Na última sexta-feira a Justiça Federal do Pará, dando prosseguimento a sua lamentável história de defesa do latifúndio e de todo tipo de arbitrariedades que vitimam as massas pobres naquele Estado do país, negou o pedido do Ministério Público Federal para processar oficial da reserva do Sebastião Curió Rodrigues de Moura, por crime de desaparecimento forçado de militantes revolucionários que foram assassinados pelo Exército no combate à Guerrilha do Araguaia.
No exato instante em que muita propaganda oficial tem sido feita pelo gerenciamento Dilma sobre a Comissão da Verdade –que alguns sabiamente já apelidaram Omissão da Verdade –tal ação serve bem a revelar, de modo concreto, o valor que pode ter tal Comissão enquanto vigore a espúria Lei de Anistia concertada pelo gerenciamento militar e mantida até hoje por todos os governos “democráticos” e pelo Supremo Tribunal Federal.
O juiz João Cesar Otoni de Matos, em sua decisão, disse que “Depois de mais de três décadas, esquivar-se da Lei da Anistia para reabrir a discussão sobre crimes praticados no período da ditadura militar é equívoco que, além de desprovido de suporte legal, desconsidera as circunstâncias históricas que, num grande esforço de reconciliação nacional, levaram à sua edição”.
Dizem que, ao se pretender julgar uma tese desde o ponto de vista democrático-revolucionário, a confissão de um reacionário é prova contundente. Precisamente esse discurso de reconciliação nacional, agora tão apregoado tanto pelos militares e seus defensores como pelo governo de PT e Pecedobê, transparece aqui, desnudo, em toda a sua verdadeira essência: a tal reconciliação nada mais é do que a impunidade absoluta a crimes de guerra e de lesa-humanidade perpetrados pelo Estado brasileiro durante o regime militar fascista. E as tais “circunstâncias históricas” aqui levantadas pelo bandido togado nada mais são que as da transição muito lenta, muito gradual e muito pacífica, sob a orientação e determinação da política externa ianque, a partir do final dos anos 70.
Ou terá sido mera coincidência que os regimes militares do cone-sul tenham se imposto de maneira golpista quase que simultaneamente, e também quase que simultaneamente cedido seu posto aos presidentes “legitimamente eleitos”?
Em outro ponto, o magistrado também alega que, ainda que tais crimes tenham sido praticados, já teriam prescrito. Podemos imputar a esse senhor o adjetivo de ignorante? Seria razoável imaginar que desconhece que crimes contra a humanidade, como é o de tortura e desaparecimento forçado, são imprescritíveis? Seria razoável imaginar que desconheça, esse senhor, que o Estado brasileiro é signatário de vários acordos internacionais, como o Pacto de San Jose (1969), que originou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que estabeleceu que“os Estados não podem, para não dar cumprimento a suas obrigações internacionais, invocar disposições existentes em seu direito interno, como o é no caso de uma Lei de Anistia que obstaculiza a investigação e o acesso à Justiça. O Estado tem o dever de investigar as violações dos direitos humanos, processar os responsáveis e evitar a impunidade”.? (Grifo Nosso). A mesma Corte define também o que constitui impunidade: “A falta em seu conjunto de investigação, perseguição, captura, julgamento e condenação dos responsáveis das violações dos direitos protegidos pela Convenção Americana”. [i] Desconhecerá o juiz que o Estado brasileiro foi recentemente condenado, por essa mesma Corte Interamericana de Direitos Humanos, pela não-apuração e punição dos crimes perpetrados durante a Guerrilha do Araguaia?
Na verdade, a violação do direito internacional por parte do Estado brasileiro é tão flagrante, que a própria ONU, assim que o juiz federal do Pará negou a ação contra Curió, apelou para o Supremo Tribunal Federal, para que esse acatasse o pedido do Ministério Público Federal.
Difícil imaginarmos que ignore esses fatos, e muitos outros que poderiam ser aqui arrolados. Trata-se, claro está, de um posicionamento político. Invocar a Lei de Anistia como desculpa quase que “técnica” para a impunidade, como faz o gerenciamento Dilma, visando se manter “neutro” e escapar de toda e qualquer responsabilidade, não pode realmente livra-los da cumplicidade frente aos abomináveis crimes cometidos no período 1964-1985. Outros países latino-americanos, como a Argentina, na transição do regime militar, também aprovaram leis de anistia (no caso de Argentina, as leis Obediência e Ponto Final). E o que aconteceu? Em 2005, devido à forte pressão popular, as duas leis foram derrubadas pela Suprema Corte Argentina, e desde então centenas de militares têm sido condenados por crimes cometidos naquele período.
Ou seja, aqui não há “técnica” –o próprio Direito, segundo suas correntes mais progressistas, não pode ser visto dessa forma, ou seja, como interpretação de legislação isolada de contexto social e político –mas sim política, posicionamento político. Ainda que tal Lei de Anistia seja vista, em seu texto, como desculpa para inocentar os torturadores –sobre isso, também, há controvérsias –poderíamos toma-la como eterna, imutável, indiscutível?
Daí vemos a indigência de declarações como a de Celso Amorim, por exemplo, que sobre esse caso afirmou que: “O Ministério Público é um órgão autônomo. Eu não vou me pronunciar se ele está certo ou errado. Isso aí é a Justiça que vai se pronunciar. A posição nossa é dar força à Comissão da Verdade, com toda a integralidade que ela tem. Para tratar desses temas, há a lei que criou a Comissão da Verdade. Vamos tratar da Comissão da Verdade, com todos os aspectos que estão ali englobados. Vamos investigar tudo o que aconteceu. Todos terão que cooperar para que se conheça a verdade e, ao mesmo tempo, a Comissão da Verdade incorpora a Lei da Anistia”. (Grifo Nosso).
É necessário torcer palavras para dizer que esse “não-posicionamento” é uma tomada de posição em defesa da impunidade, ou seja, dos assassinos e torturadores como Curió? O que significa a “incorporação da Lei de Anistia”, senão que essa Comissão da Verdade não resultará, pelo que pretende o governo, em qualquer responsabilização e punição dos carrascos do nosso povo?
Um pouco sobre Curió:
No dia 20 de junho de 2009 o jornal O Estado de São Paulo trazia matéria intitulada: Curió abre arquivo e revela que Exército executou 41 no Araguaia. Diz a matéria, baseando-se nos arquivos pessoais de Curió, que dos 67 guerrilheiros oficialmente mortos no Araguaia, 41 teriam sido executados depois de já terem sido feitos prisioneiros (até então consideravam-se 25 execuções). Segundo o próprio Curió a ordem no Araguaia era praticar aí uma guerra de extermínio: "A ordem de cima era que só sairíamos quando pegássemos o último." Esse escalão de cima era composto pelos generais Orlando Geisel (Ministro do Exército de Médici), Milton Tavares (Chefe do Centro de Inteligência do Exército) e Antônio Bandeira (chefe das operações no Araguaia).
Admitindo a execução de prisioneiros, diz Curió:
“Todos os combatentes foram mortos em combate? Não. Exemplos típicos são os casos da Dina e da Tuca. Elas foram feitas prisioneiras por mim e entregues às autoridades (...) A ordem superior era não deixar rastros da guerrilha, para poupar o Brasil de uma guerrilha, de uma Farc, um movimento montonero (guerrilha argentina), um Sendero Luminoso.”
Trata-se aqui de confissões de crimes de guerra, pura e simplesmente! Se há alguma dúvida, vamos invocar simplesmente a Convenção de Genebra, que em seu artigo quarto reza:
PRISIONEIROS DE GUERRA DEVEM SER TRATADOS COM HUMANIDADE E PROTEGIDOS DA VIOLÊNCIA. NÃO PODEM SER ESPANCADOS OU UTILIZADOS COM INTERESSES PROPAGANDISTAS.
E no sétimo:
É PROIBIDO MATAR ALGUÉM QUE TENHA SE RENDIDO.
Tudo isso é muito claro e muito límpido, não?
Numa outra entrevista concedida à Folha de São Paulo, em 2008, o tenente reformado José Vargas Jimenez assim fala sobre a sua conduta e a de Curió, durante um patrulhamento na região da guerrilha:
“Teve um camponês que encontramos no meio da selva -eu, Curió e meu grupo- que não queria falar onde estavam os guerrilheiros. Pegamos ele e botamos no pau-de-arara, só que o pau-de-arara era um viveiro de formiga. Nós besuntamos ele de açúcar, colocamos sal na boca dele e deixamos ali. Em dez minutos ele falou tudo”. [ii]
São crimes e criminosos como esses que permanecem impunes. Ledo engano, aliás, tomar Curió como um milico de pijama. Para ele isso, definitivamente, não é válido. Como espólio de guerra Curió adonou-se da exploração do garimpo de Serra Pelada aonde promoveu um reinado de terror, corrupção, violência e superexploração dos garimpeiros. Em 1993 o Tribunal de Justiça do Pará moveu contra ele um processo aonde era acusado de assassinar com um tiro nas costas um adolescente de 16 anos; em 2002 o presidente do Sindicato dos Garimpeiros de Serra Pelada, Antônio Clênio Cunha Lemos, foi assassinado com requintes de crueldade no município deCurionópolis (!), crime aonde Curió é o principal suspeito; em 2006 foi cassado do seu mandato de prefeito por acusação de corrupção, compra de votos e abuso de poder econômico. A postura da justiça federal do Pará é bem característica, não apenas pela absolvição de um torturador, mas pela absolvição de um latifundiário daquela região, onde assassinatos e desaparecimentos de camponeses em luta pela terra nunca deixaram de ser a regra, antes, durante ou depois do gerenciamento militar.