Quão difícil é defender a vida, quando os argumentos científicos ou jurídicos não importam. De que adianta mostrar que é mais eficaz e justo, além de menos traumático e contundente, promover uma campanha de prevenção à anencefalia pelo uso do ácido fólico pela mulher grávida durante a gestação, evitando a má formação da calota craniana e protegendo o desenvolvimento normal do cérebro, se o intuito de abrir as portas para a descriminalização do aborto é patente e atropela qualquer proposta mais saudável? Anencefalia não é ausência de vida neurológica, mas corrosão paulatina do cérebro em formação, maior ou menor, pela ação do líquido amniótico em face de defeito no fechamento do tubo neural, evitável pelo consumo antes e durante a gestação, das vitaminas B9 ou M, hidrossolúveis, e encontráveis no feijão, espinafre, brócolis, abacate, cenoura, couve, carne, laranja, maça, milho, leite e queijo.
Se é possível prevenir, por que tanto empenho em garantir o aborto da criança com essa deficiência? É, realmente, difícil, diante da pressão midiática, esgrimir a Constituição ou o Pacto de São José, ratificado pelo Brasil, que garantem o direito à vida desde a concepção, bem como a prioridade desse direito fundamental, como condição de existência dos demais, se a retórica da indignidade de uma vida assim e do sofrimento desnecessário de uma gestação nessas condições é o que prevalece, augurando uma sociedade hedonista e eugênica.
No entanto, pensando melhor, é, na verdade, fácil defender a vida, sabendo que mais de 70% da população brasileira, segundo as últimas pesquisas, são a favor da vida e contra o aborto. É mais fácil defender a vida sabendo que, na mulher, o instinto da maternidade é fortíssimo e o amor ao filho, com as limitações e defeitos que tiver, sobrepassa as condições de beleza e perfeição, sendo tanto maior quanto mais carente se mostrar o filho.
É, enfim, fácil defender a vida ao lembrar do Rafael, filho anencefálico de meus amigos Paulo e Márcia, que viveu meia hora, foi batizado e é por nós lembrado com afeto, como um dom de Deus, numa gestação normal, sem o trauma e os efeitos colaterais do aborto. Fica ainda mais fácil defender a vida, por sua beleza inata, ao olhar para a foto que tenho na estante, de minha sobrinha Daniela, de 3 anos, com síndrome de Down, encantadora em seu modo de ser diferente e feliz.
Talvez os que defendam com tanta veemência o aborto, em nome da liberdade, da saúde e do sexo sem gravames, não tenham ainda descoberto que, por trás do sofrimento que possamos ter num momento, a felicidade da aceitação da vida como ela é, como um dom, traga embutido um segredo. O segredo descoberto pelo pai do menino cego do filme iraniano A cor do Paraíso: só a sua cegueira espiritual não permitia perceber a alegria do filho com sua cegueira visual.
Quem sabe ainda seja tempo de salvar, perante o Supremo, não só as crianças anencefálicas, mas todas as crianças que, no futuro, por defeituosas ou indesejadas, corram o risco de serem descartadas em nome da lei. Quem sabe ainda haja tempo de se descobrir, como o poeta, que, em qualquer condição, a vida é bonita, é bonita e é bonita.
Ives Gandra Martins Filho
Ministro do TST e professor de Filosofia do Direito do IDP.