Acredito não ser necessário conceituar cidadania, isto é, limitá-la dentro de um pequeno texto fechado que pode muito bem ser encontrado em qualquer dicionário. Tenho razões para fazê-lo.
O conceito de cidadania do qual desejo fugir e que encontramos pronto nas publicações tradicionais, não nos serve neste momento. Ele possui uma absurda neutralidade e sua identidade está profundamente enraizada nos princípios liberais clássicos que marcaram o seu aparecimento na Europa moderna.
É preciso muito mais que um mero conceito de cidadania já cristalizado. Faz-se necessário compreendê-la no terreno conflitivo da história, longe das abstrações ou das afirmações de princípios que lhe deram origem.
Cidadania na Europa moderna foi um conceito que a burguesia tomou para si, segundo seus interesses, sustentando-o em dois fundamentos básicos de seu projeto: o individualismo e o contratualismo (conferir em Thomas Hobbes e John Locke).
O conceito, que é aprofundado e renovado com a burguesia, torna-se defensor da existência de uma igualdade básica e universal entre as pessoas – igualdade de chances e não de oportunidades - , garantindo-lhes uma realização individual diferenciada, ou seja, apesar da igualdade, cada pessoa deverá ser responsável por sua realização, Esta, a realização, ocorrendo de maneira diferenciada, dependerá das circunstâncias sociais, políticas, econômicas e culturais que estiverem envolvendo cada grupo social e, por conseguinte, cada um de seus membros.
A igualdade básica e universal burguesa, uma conceituação jurídico-formal, nasce a partir de uma sociedade concreta, marcada por uma diferença fundamental, em que grupos sociais, livres e juridicamente iguais, concorrem em um mercado (conferir em Adam Smith) definido pela desigualdade de chances para buscarem a apropriação dos meios de produção e, consequentemente, a reprodução da riqueza.
É preciso saber que, quando da origem do conceito de cidadania na Europa moderna o grupo social burguês encontrava-se em uma situação privilegiada. Desde o século XI, a partir do renascimento comercial e urbano, a burguesia passa a ser a controladora dos principais meios de produção, relegando os outros grupos sociais, em especial as classes populares, a uma condição constrangedora na qual, em liberdade (?), através de um contrato, resta-lhes vender o único bem que possuíam: a força de trabalho, geradora de riquezas para a burguesia.
Sendo assim, a cidadania que emerge na Europa moderna e que hoje continua presente em nossa sociedade, principalmente nos países periféricos, traduz um ser no mundo conectado com uma vida de exclusões e que navega bem distanciado do poder.
O cidadão contemporâneo, o das classes populares, é aquele que, estando à margem do poder, não pode produzir efeitos desejados, não tem forças para fazer valer seus legítimos direitos e é incapaz de interferir, em todos os âmbitos e níveis, nas questões políticas, econômicas, sociais e culturais. É “cidadão” que tem seu poder usurpado por um segmento da sociedade que, através de suas condições econômicas, define uma experiência de cidadania desigual, excludente e marginalizadora, apesar da consagração jurídica e formal do princípio da igualdade básica e universal.
Esta experiência de cidadania, a consolidada na Europa moderna, mesmo sendo entendida como algo que fere a dignidade humana, possui um variado instrumental de sedução. Quem de nós pode negar o quanto a aquisição de documentos – carteira de identidade, título de eleitor, etc. – é usada como um trunfo para justificar cidadania plena? Quem de nós ainda não percebeu a enorme quantidade de seres humanos “documentados” que vivem à margem da dignidade humana, amargando projetos de desesperança e desencantos? Quem de nós ainda não percebeu o que está velado na “Pedagogia do Denuncismo”, incentivada pelos poderosos, que oferece satisfação imediata, sensação de cidadania, sem que o objeto da denúncia sofra nenhuma intervenção e continue produzindo efeitos danosos para a população. Quem de nós não viveu, ainda que subjetivamente, a crença de que tudo é possível desde que haja esforço e trabalho e, o mais grave, não relacionou o fracasso á sua incompetência?
A cidadania que queremos e devemos construir, a idealizada e possível, é a da participação no poder, aquela que permite nossa interferência nos núcleos decisórios da sociedade, tornando-nos “dirigentes sociais” com condições objetivas de dirigir e controlar quem dirige, quem governa. (conferir em Gramsci).
É evidente que não existem receitas prontas para a consolidação da verdadeira cidadania. Nós iremos aviá-la, processualmente, na media que, na relação com os outros e o mundo, consigamos nos perguntar sempre: qual cidadania?