Falou o nome. Enquanto a secretária olhava no arquivo, a mulher abriu a bolsa e tirou o espelhinho. Diante dele, passou a mão nos cabelos e mirou as rugas. Sentiu-se de repente muito velha e feia.
A secretária : quarto número dezenove. Deve ter saído há pouco da mesa de cirurgia. Agradeceu e seguiu pelo corredor branco. Um cheiro indefinido saía de sob as portas fechadas. Subiu uma escada. Havia um elevador mas ela preferiu subir as escadas. Uma enfermeira descia conversando com um médico. No segundo andar havia um grande vaso de folhas verdes. Ela ficou por um momento na frente do vaso
retomando a respiração normal e se perguntando por quê no vaso só havia folhas e
nenhuma flor. Começou a procurar o quarto número dezenove.
A numeração ia de um a dez e ela teve de subir novamente uma outra escada. Parou no meio, a mão no peito: meu Deus, por quê sempre fazia as coisas pelo lado mais difícil? Então desceu os degraus que acabara de subir e esperou o elevador. Ao entrar nele, começou a pensar no marido. Ele não podia fazer aquilo com ela. Era uma espécie de deserção. Ficou com vontade de tirar outra vez o espelhinho da bolsa mas ante a perspectiva de tornar a ver o mesmo rosto de rugas, desistiu. O ascensorista olhava para ela., Na bolsa entreaberta, o brilho do espelho entre o batom e a carteira de identidade. O ascensorista a encarava. O que começava a sentir pelo marido naquele momento : uma raiva fininha querendo crescer e azedar o seu dia. A senhora vai sair ou não ? resmungou o ascensorista.
O quarto número dezenove ficava entre o quarto número dezoito e o de número vinte e ela achou aquilo muito lógico e perfeito. Como perfeito era o velho que passava na sua cadeira de rodas, as duas pernas pela metade. Ela ficaria toda uma eternidade pendurada naquele vácuo branco e de cheiro indefinido se não existissem um compromisso e uma leve rede de água em seus olhos. Passou a mão nos olhos e depois no vestido e novamente se sentiu velha e desajeitada.
Ao abrir a porta do quarto dezenove : o universo higienizado, os assépticos metais borbulhando na água fervente, a paz doméstica dos chinelos sob a cama, o sol do meio-dia e um rosto estranho. Ela não podia acreditar. Já não era mais o homem de cinquenta e cinco anos – o mocinho de quinze? O novo rosto imberbe do marido trazia um novo som : foi uma operação tranquïla.
"É", falou ela, torcendo a bolsa nas mãos, "você ficou um boneco"
Não fiquei? Vem cá.
Ofereceu o murcho rosto triste para o homem. Beijou-o depois. Era como se beijasse o próprio filho ainda nas entranhas. Você ficou um boneco, tornou a repetir. Ele sorriu cheio de charme, o olho esquerdo arqueado : a enfermeira falou que eu fiquei com a cara do Terence Stamp. É, você ficou com a cara do Terence Stamp.
Enquanto ela falava, ia folheando o catálogo cheio de rostos. Eu fiz isto por você, querida. Eu sei. Você não vai ficar com ciúmes da enfermeira, não é? Ela abanou a cabeça e falou : não. Eu prometo ser o mesmo marido rabugento de sempre. Ela sorriu de olhos baixos – procurava nele a raiz do velho homem. Ele, sabendo que a deixava constrangida, pediu o espelho. Mirou-se de vários ângulos. Depois – a cirurgia ficou tão cara que seria melhor permanecer com o rosto antigo. Pelo menos foi o rosto que Deus me deu. Riu forçadamente, tentando sustentar o fracasso da frase. Esperou que ela dissesse alguma coisa. Ante o seu silêncio, continuou – agora é uma vida nova. A mulher repetiu a frase do marido e ficou sem saber se permanecia sentada na cama ou se andava pelo quarto de uma maneira delicada, como andara na sua lua-de-mel, ou se ia para a janela se debruçar e chorar.
Duílio ao lado de Fernando Brant