Falar de arte e relacionar o tema a alguma esfera de nossas vidas implica em lidar com o sério conflito entre criatividade pessoal e controle (ou pressão) social. É fato que a arte aparece indissoluvelmente ligada a uma dada sociedade e à sua época de produção, não tendo, por exemplo, uma nítida delimitação fronteiriça da atuação artística e da vida como um todo. Portanto, ainda é possível fazer uma descrição singular entre a relação arte-sociedade em tempos passados e que podemos prolongar e traçar um paralelo com os nossos dias mais atuais...
Logo após o término da Segunda Guerra Mundial, jovens nos Estados Unidos, fartos de todo o ufanismo hipócrita e progressista que permeava em seu país, começaram a questionar as bases de sua própria sociedade, desencantando-se com aquela realidade apresentada e passaram a sentir uma urgência de correr na contra-mão daqueles ideais estabelecidos e enraizados: a essa rebeldia cultural deu-se o nome de contracultura.
Em busca pela real identidade norte-americana, não importando qual fosse, uma juventude que se encontrava perdida em meio a vários costumes que não lhe respondia, decidia abandonar tudo e sair de carro (geralmente através de caronas) pelas estradas do país. Era justamente quando os EUA eram, após a guerra mundial, o expoente econômico mundial que tinha acabado de construir o ''American Dream'' e que criava um estilo próprio de vida que estava sendo passado a todo o mundo ocidental – o ''American way of life''. A solução para esses jovens ''deslocados'' e apaixonados por literatura era então se desprender e viver a vida de uma outra maneira e de forma intensa.
Coincidentemente, esse movimento contrário se dá ao mesmo tempo em que estudiosos publicavam no New York Times um estudo apontando que a televisão estaria mudando a maneira como a sociedade enxergava a política, o lazer, e como ela própria construía sua visão de mundo etc, se expressando culturalmente, acima de tudo. Mesmos anos 50 quando surge o movimento beat, movimento literário que abusava de um experimentalismo sem limites e que acabava repercutindo nas obras de seus escritores.
A origem do nome ''beat'' pode ser explicado pela atmosfera jazzística que tomava conta do círculo frequentado por esses escritores, que remete a uma onomatopéia de um som específico e que pode ser entendido pela etimologia da própria palavra ''beat'', que significa também ''batida'', algo bem intrínseco ao bebop, uma das vertentes do jazz. Logo, eram eles os beatniks, e seus ouvidos eram habitados pelo jazz e suas idéias não poderiam ser outras senão de revolta e não-conformidade.
Os beatniks, denominação também usada em sentido pejorativo pelos críticos da época, foram esses escritores que não procuravam separar – tal como acha impossível o sociólogo Norbert Elias – a vida pessoal da produção artística. Não havia uma fronteira que delimitasse ambas as partes. Era um todo conexo, uma vida artística, desregrada e marginal, onde a arte não existia sem o que havia de mais íntimo em suas vidas. Contudo, o gosto pela aventura, o abuso das drogas, o sexo casual e a vida nômade lhes valeram o rótulo de subliteratos. Não se encaixavam no que se considerava ser ''legítimo'' nos campos universitários e por não agradarem à crítica especializada devido, sobretudo, a uma forma mais espontânea de escrever e a uma poética mais natural e fluida.
A literatura beat, portanto, não foi fruto de um “projeto” ou alguma escola de tradição. Ela surgiu no bojo de uma sociedade, dada pelas desconexões circunstanciais entre centro e margem, estabelecimentos e distinções.
Os escritores beats nunca aspiraram ao beletrismo em detrimento de seus gostos/ideais - apesar de possuirem vastas referências literárias e filosóficas. Entretanto, uma aproximação entre a literatura e a vida, o gosto pela loucura, o abuso das drogas, o sexo casual, a vida nômade e, sobretudo, uma forma mais espontânea de escrever, lhes valeram o rótulo de “subliterários” e “escritores marginais”, rótulos estes que perduram até hoje.
Mas ainda assim, nada poderia estar mais longe da verdade que esse rótulo, visto que Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William S. Burroughs – principais nomes desse movimento – e outros como Hunke e Solomon, possuíam um vasto conhecimento sobre a literatura universal: eram todos estudiosos e leitores apaixonados de grandes cânones literários como Blake, T. S. Eliot, Dostoiévski, Tolstói, Emerson, William Faulkner, Whitman, etc. O que não faz sentido atribuir à literatura beat uma conotação que a classifique como inferior.
Obviamente que determinadas condutas (ou forma de rompimento com uma tradição estabelecida) estariam, assim, distantes dos cânones universitários da crítica literária, que certamente repudiaram - como repudiam até hoje - qualquer tentativa ou aproximação do tipo.
No entanto, não devemos confundir vida de marginalidade com uma literatura marginal: o que esses escritores pretendiam era fundir tudo em uma coisa só e alcançar, impactar, revelar a todos a sociedade norte-americana do final da década de 1950 e começo da década de 1960. Ao não separar a arte da vida, os escritores beats promoveram uma verdadeira revolução cultural, criando uma percepção do mundo e do homem da qual fazem parte a ampliação e o enriquecimento da liberdade individual, e a superação de divisões e modos de repressão, pois jamais temas como a questão política, os direitos humanos, a igualdade racial, o amor livre, o homossexualismo, a marginalidade, a drogadicção, a aventura e a loucura foram abordados de tal forma. O fato é que o movimento beat tornou o mundo mais permeável a temas até então intocáveis.
Desta forma, o que se faz necessário pensar é que apesar dos ataques que sofreram, da censura de algumas de suas obras e do não reconhecimento da crítica especializada na época, os escritores beats, fundindo vida e arte em um só corpo, davam voz e forma a um movimento artístico único e singular que acabou se consagrando no ambiente literário, pelo bem ou pelo mal.
E a despeito do descaso dos bancos universitários, mostraram, com o tempo, que o espaço de consagração vai além das simples diretrizes da erudição e perpassa por caminhos ordinários e pessoas loucas, nem sempre preocupadas com o centro, mas com a margem. E nela vivendo.
Como bem disse Jack Kerouac, em um tom quase profético e libertário: ''Qual é a sua estrada, cara? A estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, a estrada dos peixes, qualquer estrada... Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância. Como, onde, por quê?''
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*Por Marcos Tavares Prates Estudante do 6º período de Ciências Sociais da UFF, Niterói.