Relembrando casos recentes
Em janeiro de 2008, veio à tona o problema dos cartões corporativos. Um vasto número de agentes de sustentação dos partidos políticos recebia cartões para pagar despesas particulares com recursos públicos. Foram denunciados, entre outros, gastos com sex-shops, cervejarias e free-shops (onde se vendem coisas importadas).
Em junho 2009, foi a vez dos atos secretos do Senado. Um levantamento inicial da comissão de sindicância daquela "casa" apontou para a existência de pelo menos 650 decisões não publicadas, notadamente nomeações de afilhados políticos. O centro dos ataques foi o senador José Sarney (PMDB), que logo se apressou em se defender dizendo que "a crise é do Senado", tentando livrar a sua pessoa. Luís Inácio saiu em defesa do seu aliado. Soltou um comentário típico: "eu sempre fico preocupado quando começa no Brasil esse processo de denúncias, porque ele não tem fim e depois não acontece nada". E depois que "Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum" [1]. Sarney não era mesmo uma pessoa comum. Tampouco Collor. Eram aliados de que o PT precisava para que Dilma ganhasse as eleições de 2010. Mais além de tudo isso, o que salta aos olhos é o total desrespeito de Luís Inácio pelo povo brasileiro.
Aliás, a relação entre Sarney e os atos secretos não era nenhuma novidade. Em 1986, o mesmo escândalo de atos secretos no Senado veio à tona, conforme publicou a revista Veja de 14 de maio daquele ano. O título era Debaixo do pano: trem da alegria pega filha de Sarney [no caso, Roseana Sarney, que havia sido nomeada num ato secreto]. A matéria explicava:
"A tradição é simples: o senador chega à Casa com oito anos de mandato e filhos, noras ou genros com uma vida pela frente. Emprega alguns deles como assessores e explica que se não pode confiar nos parentes não pode confiar em mais ninguém. O tempo passa e, com a proximidade do fim do mandato, o Senado efetiva os interinos, tornando vitalícias as nomeações."
Foi o mesmo argumento utilizado pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, em abril de 2005, quando defendeu o nepotismo com a tacanhez própria dessa terra de coronéis: "Essa história de nepotismo é coisa para fracassados e derrotados que não souberam criar seus filhos. Eu criei bem os meus filhos, que têm universidade, e agora estou indicando" [2].
Já no começo de 2011, não são apenas as pensões vitalícias dos ex-governadores, mas os passaportes diplomáticos para os filhos de Luís Inácio e, principalmente, a notícia que agora a imprensa trata de fazer esquecer: o aumento de 61,8% nos salários dos parlamentares e 133,9% para Dilma e seu vice. Esses mesmos que estão defendendo um aumento irrisório do salário mínimo que só servirá para aumentar o custo de vista e reduzir mais ainda o poder aquisitivo da população, respaldado pelo acordo entre as centrais sindicais e o líder do governo Cândido Vacarezza, o mesmo que tem proposto, há vários anos, enterrar a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Indagado sobre os aumentos astronômos aos parlamentares e presidente, Luís Inácio respondeu com sua típica ironia anti-povo [3]:
"Eu só lamento porque o Paulinho (deputado Paulo Pereira da Silva PDT-SP) me avisou que o Congresso Nacional acabou de aprovar o reajuste para o presidente e para os ministros, mas para o Lulinha aqui, nada. O Lulinha não recebe porque é só para a próxima legislatura."
"Nós precisamos acabar com os privilégios"
Em meio ao problema dos passaportes diplomáticos e das pensões dos ex-governadores, Ophir Cavalcanti declarou: "Nós precisamos acabar com os privilégios. A sociedade brasileira chegou ao limite. Nós não podemos mais ter esse tipo de prática colonialista". Essa declaração se destaca, porque vai além das discussões sobre inconstitucionalidade, e mostra uma pretensão por grandes mudanças. As ações que vêm sendo propostas pelo Conselho Federal da OAB são importantes, mas não mudarão a estrutura oligárquica da sociedade brasileira.
Em 1963, na obra Quatro Séculos de Latifúndio, Alberto Passos Guimarães mostrava que a estrutura agrária brasileira não havia se alterado fundamentalmente desde a colonização, que permaneciam "relações semicoloniais de dependência ao imperialismo e os vínculos semifeudais de subordinação ao poder extra-econômico, político e ‘jurídico' da classe latifundiária". E que a transformação não era uma questão de operações aritmética ou de planos de governo.
A transição "lenta, pacífica e gradual" da gerência militar para as gerências civis do Estado brasileiro, na década de 80, garantiu a manutenção dessas estruturas. O "pacto social" do PT e de Luís Inácio a partir de 2003 também. A figura renitente de Sarney demonstra o elo de ligação entre todas essas épocas.
O fato de o presidente da OAB estar falando, em 2011, de acabar com os privilégios, é outra demonstração. Em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, marco da Revolução Francesa, trazia em seu art. 1º: "os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum". A abominação dos privilégios foi o motor que conduziu a derrubada do feudalismo na Europa, e a ascensão do capitalismo.
No Brasil, há um processo diferente de consolidação do capitalismo. Há o que se define por capitalismo burocrático, um capitalismo que se desenvolve sobre uma base semifeudal, agro-exportadora, e sob domínio imperialista, para que atenda às necessidades de acumulação de capital nas metrópoles do sistema. O Estado tem um papel fundamental como alavanca dessa economia subordinada. Ele não se conforma como expressão da unidade nacional (Estado-nação), mas como um aparato para garantir os privilégios dos monopólios estrangeiros e das classes dominantes locais, que são, como dizia Eduardo Galeano em 1976 [4], "dominantes para dentro e dominadas de fora". E prosseguia:
"Incorporadas desde sempre à constelação do poder imperialista, nossas classes dominantes não têm o menor interesse em averiguar se o patriotismo poderia ser mais rentável do que a traição ou se a mendicância é a única forma possível de política internacional."
Alysson Mascaro [5] afirma que o objetivo precípuo desse Estado está "na associação com a exploração burguesa, em garantir seus privilégios e interesses", impedindo que a legalidade estatal se realize como instância impessoal e apartada dos conflitos de interesse próprios da sociedade civil: "um Estado com seu direito, mas uma sociedade sem lei". Os monopólios capitalistas dispensam a igualdade jurídica como pressuposto da acumulação de capitais.
Tais ordens sociais não são fundadas na igualdade jurídica, mas em privilégios de classe sustentados por Estados autoritários: "a face jurídica dessa sociedade será a monstruosa sombra de universalidade num corpo de privilégio e autoritarismo". A legalidade é reduzida a um argumento lançado a posteriori, quando as relações já estão demarcadas pelo favorecimento pessoal e político.
Desenvolvimento desigual do capitalismo e capitalismo burocrático, que conserva as estruturas sociais atrasadas e tem no Estado um instrumento fundamental para assegurar os privilégios das classes dominantes que atuam como enlace aos monopólios imperialistas, estas são as condições pelas quais a universalização da forma jurídica sofre uma ruptura, e constitui regimes sociais que se baseiam não na afirmação da legalidade, mas na sua negação e impossibilidade.
Se os milhões gastos com as pensões de ex-governadores são capazes de indignar o povo brasileiro, o que se dirá do roubo de imensuráveis milhões desde os tempos coloniais, e que tem prosseguido ininterruptamente até os dias atuais, sob as formas mais complexas do sistema financeiro, respaldados pelo comprometimento das classes dominantes e seus partidos oficiais com a expropriação do povo. Isso se demonstra mais uma vez quando a primeira preocupação de Dilma, ao tomar posse, foi anunciar medidas de arrocho fiscal (leia-se retirada de direitos sociais), e essa gente segue preparando ataques mais fortes à previdência social, às leis trabalhistas, privatizações e aumento dos tributos [6].
Quando se compreendem todas essas questões, pode-se perceber que o que significa realmente acabar com os privilégios, e que o caminho para isso é muito mais profundo que medidas judiciais específicas e oposto aos partidos da ordem e seus jogos eleitorais.
Notas
[1] www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090618/not_imp389101,0.php
[2] www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u68312.shtml
[3] agenciabrasil.ebc.com.br/home/-/journal_content/56/19523/1122598
[4] Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina.
[5] Alysson Mascaro, Crítica da legalidade e do direito brasileiro.
[6] Maria Lúcia Fatorelli, www.divida-auditoriacidada.or