As letras não se contentam com a fixação das palavras. A lei tem morta sua letra. Elas são transgressoras de berço, desnaturadas. Não são fictícias, falsas, mas sim ficcionais. As letras não são criadas pelo homem. Pois são elas que criam o homem. O homem é ficção inventada pela capacidade de mutação das letras, por suas inventividades, fertilidades, suor e orgasmo. Pequeninas partículas indivisíveis. Às vezes inauditas ficam. Malditas. Porém, derramam explosões de dizeres. Permacem indizíveis nas bocas febris. Mas tergiversam incansáveis, contornando, rabiscando, escorregando na silhueta dos corpos humanos. Os Homens são o efeito, e não a causa, do sentir das letras. São sentidos pelas letras. Mas jamais conseguem dar sentido a elas.
Quando escrevo, ela se esconde nas letras, entrelinhas, e por saltar a minha frente, visível em minhas palavras, eu não a vejo. Brinca comigo, mergulha nas plumas listradas das folhas de rosto, ainda quentes, saídas do forno. Mas quando um pingo distraído mancha o papel, não mais em branco, úmido, é ela que inunda as linhas inteiras. Desavergonhada, estridente, renitente. Paira. Quanto mais escrevo, menos a vejo. É ela que me vê, é ela o que escrevo.
Uma rosa no livro. Um livro sobre rosas. Poemas escritos por um autor, espalhados pelas páginas espumosas de arfantes bocas em botão de flor. Histórias que contornam e tecem um antes, um durante e um depois da rosa. Um leitor que, em pé, lê a rosa da mulher e a mulher da rosa. Olhares que se encontram, distanciando-se. Olhares que se desencontram, aproximando-se.
Um livro, uma rosa. Ambos possuem histórias. O livro, escritas pelo autor, e reescritas pelo leitor. A rosa, contadas pelo mesmo leitor que, ao ler o livro, especula as entrelinhas do sentimento daquela que porta a rosa e que fita o livro. Desatinos cruzados. Destinos que não se vêem. Contingências segregadas, convergindo em passos distintos, ao mesmo ritmo. Dois objetos que suportam milhares, mulheres, histórias. Segredos cortantes, gargantas inflamadas. Gritos calados, calejados, surdos. Uma rosa no livro. Um livro sobre rosas...
Pétalas derramadas no suor de uma mulher da vida. Pétalas que cobrem o corpo de uma menina que a morte espreita. Mulher da vida, tem vida? Mulher da morte, habita? A menina adormecida, pés sujos, compõe, com uma respiração pausada, o traço entre duas estrelas.
A batuta do maestro, regendo a sinfonia celestial e o bailar do dueto estrelar. As pétalas, na visão do homem com a menina no colo, platéia estarrecida e extasiada, são aplausos que ovacionam o final do espetáculo. A menina continua adormecida, e a mulher da vida, que a morte não leva, num gesto doce e angelical, banha a personagem principal, invisível mas existente entre as estrelas, com as pétalas que aquecem, perfumam e colorem o feio recusado.
Felinos, com seus movimentos sinuosos, de bailarinos do municipal, revelam-se acrobatas quando um filete de água ameaça encontrar suas patas. Não lhes importam a procedência, contanto que seja um líquido acumulado em seus passos, ou escorrendo sorrateiramente, cambaleando pelo alinhavo que as folhas secas costuram no seio da terra matinal.
Se alguma coisa mudou com o passar dos tempos, não foi a potabilidade da água, a pureza do ar, ou a limpeza das calçadas. O cinto que não mais regula e equilibra os amores, as lágrimas, a respiração ofegante ou suave, na verdade é escrito com a letra "s". Um sinto muito, mas o olhar de criança se perdeu. Barquinho catártico, viajando na ferida que não estanca as gotas ressecadas da transpiração. Poderia ancorar em mares revoltos e não antes navegados? Agora, se partir, ancorar-se-á esgotado. Triste fim, não de um barco, mas de uma criança que faz de conta.
Pingos grossos de uma pancada de chuva de verão. Passageira. Passa sempre de qualquer maneira. Os pingos grossos espancam a cabeça do menino, como seu severo pai fazia ao ensinar-lhe a lição. "- Seja correto, menino! O erro é dos fracos..." Cresceu dormindo. Machucado pelo avesso da moral. Subindo, ofegante, no pau de sebo do moral. Crescer. Descer. Crê ser? "Desser"? "- Sê forte, meu filho!", disse o preocupado pai com a educação do filho. Errar é humano? Talvez seja apenas o erro que faz o humano, que o humaniza. O acerto acentua a máquina desalmada. Errar, errância, errante. O acerto é tiro e queda. Passos únicos, certeiros. O acerto não varia. Não anda avariado. É objetivo. Já o erro, não... O erro é múltiplo, diverso, versátil. Errar não é só humano. É a real maneira de se humanizar.
O insone é aquele último sobrevivente, resistente, vive com a morte dos demais. Enquanto todos dormem, incluindo o cachorro e a amada, o insone reina sozinho junto aos corpos embalsamados, mumificados em seus desvairados desejos.
O lençol que recobre a amada simboliza o beijo da despedida, mortalha que apaga as arestas das triviais incompreensões de vigília. Até o cachorro, que embora não deseje, também é sem sentido quando acordado, dormindo passa a existir estirado no mármore da plenitude racional.
Interessante quanto as pessoas, em seus afazeres cotidianos, parecem zumbis atônitos, repetindo os movimentos imbecis dos cães atrás de seus rabos, ou deslizando para lá e para cá, saltitantes. Agora, quando dormem, o mundo faz o mais absoluto sentido. Os corpos estáticos, do cão, da amada, durante o sono, vivem plenamente uma existência repleta de significado, racional, contra a ausência de verdade da vigília.
O insone é esse sábio que pode observar o ruído silencioso do ressonar, respiração pausada, do cão e da amada, e não se entregar a homogeneidade plácida que traga a existência na imperial verdade do imutável. A verdade não está nos hesitantes marasmos do dia a dia. A verdade está na placidez dos corpos em repouso. A verdade está na morte. A verdade está no corpo em sono. Bonecos cenográficos. Manequins de vitrine. Neles está a verdade. A verdade está no insone que vê o em sono.
Poemas escritos por Alex Azevedo Dias