Sem falsa modéstia, acertei em praticamente tudo que escrevi sobre a campanha e o resultado do 2º turno da eleição presidencial.
Leitores contrariados com a derrota demotucana, entretanto, correram a me rotular de "petista", forma bem brasileira de desqualificar argumentações irrespondíveis.
No terreno minado em que se transformou o debate político na internet, não há mais espaço para nuances e sutilezas.
Caímos no maniqueísmo total: reduz-se tudo a uma disputa entre o Bem e o Mal, só diferindo o entendimento sobre quem seja o mocinho e quem seja o bandido.
Para veteranos de outros carnavais, entretanto, há uma infinidade de tons entre o branco e o negro. Foi assim que aprendemos a pensar a realidade e a direcionar nossas ações.
Não mudarei para satisfazer o primarismo de ninguém. Pois, mais do que êxitos, ganhos e prestígio, o que me importa é a coerência. Sou capaz de suportar a reprovação generalizada, quando intimamente sei que estou certo.
Nem imagino o que aconteceria se me sentisse um safado -- como muitos que abriram mão dos seus ideais devem, lá no fundo, estar cientes de que são, embora finjam acreditar que evoluíram.
Então, não me incomodei nem um pouco quando alguns me acusaram de ajudar a direita, ao defender a posição de que cidadãos com convicções revolucionárias deveriam, no 1º turno, votar num dos quatro candidatos assumidamente anticapitalistas, e não na candidatura reformista com chance de liquidar logo a fatura.
E, como tudo confluía para (se houvesse) um 2º turno entre Dilma Rousseff e José Serra, também antecipei que, nesta hipótese, o certo seria apoiarmos a candidatura reformista contra a que, além de ser de centro-direita, englobava suspeitíssimos bolsões neofascistas.
REFORMA OU REVOLUÇÃO
Que eu me lembre, foi no final de 1968, ao redigir meu primeiro documento político mais ou menos autoral, que respondi à célebre questão colocada por Rosa Luxemburgo (reforma ou revolução) alinhando-me com os defensores da segunda, contra os esquerdistas que se conformavam com a primeira.
Para mim, não foi só uma besteirinha alinhavada para um congresso secundarista. Foi uma diretriz para a vida inteira.
Mais tarde, vim também a perceber quão insensata era a postura dos companheiros que faziam oposição meramente destrutiva às por eles chamadas políticas econômicas burguesas, arriscando-se a atirar o Brasil numa depressão.
Ou seja, num momento de grande fragilidade econômica, sustentavam que seria bom se o caldo entornasse de vez, para as massas aprenderem na carne quão perverso é o capitalismo.
Contra esses eu argumentava que, nas crises econômicas (que eu havia estudado em profundidade para produzir uma série jornalística), a primeira coisa que acontece é o arrefecimento da combatividade dos trabalhadores.
Temerosos de perder o emprego numa época de vacas magras, eles, em sua maioria, abdicam de reivindicações, desertam dos sindicatos e enfiam a cabeça na areia.
Então, eu concluía, seria suicídio contribuírmos para o agravamento de qualquer recessão, além de uma desumanidade em relação aos humildes, que são sempre os que mais sofrem.
Dessa polêmica me veio a certeza de que o "quanto pior, melhor" não deve ter lugar nas lutas políticas e sociais.
Lembrei-me de haver lido, em Isaac Deutscher, que a democracia alemã fora detonada pelo ataque conjunto da direita e da esquerda: os comunistas, qualificando os socialistas de "sociais-fascistas", ajudaram Hitler a varrê-los do poder.
Acreditavam que, alijados os intermediários, no confronto aberto com o verdadeiro inimigo levariam a melhor.
Mas, perderam. E, com sua aposta insensata, pavimentaram o terreno para os horrores da 2ª Guerra Mundial.
Lera sem muita atenção este relato. Mas, minhas próprias opções me levaram a perceber, posteriormente, sua enorme importância. Trata-se de um erro que jamais deveremos repetir.
Assim, no 2º turno, coloquei-me vigorosamente contra o retrocesso, enfatizando os riscos que a democracia brasileira correria na eventualidade de um governo com forte presença do DEM (herdeiro dos arenosos apoiadores da ditadura), um vice ultradireitista como o ìndio da Costa e uma relação pouco clara com as correntes virtuais neofascistas.
Isto incomodou aquelas tendências de esquerda que colocam o lulismo praticamente no mesmo plano dos inimigos capitalistas.
Fazer o quê?! Toquei minha caravana adiante.
CIVILIZAÇÃO x BARBÁRIE
Na antevéspera da votação, com a certeza da eleição de Dilma, antecipei a postura a ser adotada no day after:
"[Dilma} já conseguiu evitar o retrocesso, parabéns!
"Torçamos para que ela seja igualmente bem sucedida em deslanchar o avanço, com determinação e ousadia".
Tornei mais clara ainda esta idéia no domingo da vitória:
"Torço para que a Dilma saiba aproveitar seu grande momento, não sendo apenas uma estátua de Davi, mas sim a aguerrida companheira que:
- como Chaplin, queria chutar o traseiro dos ociosos;
- como Cristo, trouxe uma espada para combater a injustiça; e
- como Marx, pretendia proporcionar a cada trabalhador o necessário para a realização plena como ser humano".
Trocando em miúdos, com seus oito anos de políticas cautelosas, Lula melhorou a vida dos humildes e fez jus à sua gratidão.
Agora, com nossa economia deslanchando como não se via desde os melhores anos do milagre brasileiro, Dilma pode desarquivar algumas propostas originais do PT que ficaram para trás, à espera de melhor oportunidade.
Tal oportunidade chegou e, se ela a aproveitar, desempenhará um papel de primeira grandeza na História escrita pelos explorados e oprimidos, que é bem diferente da História oficial.
Em sua primeira coletiva à imprensa, houve um momento mágico em que Dilma recolocou os valores humanitários no centro das decisões políticas, descartando o pragmatismo amoral:
"Mesmo considerando usos e costumes de outros países, continua sendo bárbaro o apedrejamento da Sakineh".
Sim, chega dessa relativização obscena que o Itamaraty vinha adotando em questões, estas sim, sem meio termo possível: ou se está ao lado dos homens, ou ao lado das bestas-feras!
A esquerda tem de voltar a alinhar-se, decidida e incondicionalmente, à civilização, contra a barbárie. Só assim tocará de novo os corações e mentes, atraindo para seu campo os melhores seres humanos -- aqueles que são movidos pela esperança num mundo melhor e disposição de contribuir para seu advento.
À Dilma que proferiu tal frase eu dou um voto de confiança: fez-me lembrar a vibrante companheira que conheci nos idos outubro de 1969, durante o Congresso de Teresópolis da VAR-Palmares.
Posso ser um incorrigível sonhador, mas espero sempre o melhor das pessoas.
Então, até prova em contrário, prefiro acreditar que, lá no fundo, sem dar bandeira porque isso em nada facilitaria sua jornada, Dilma ainda é Vanda -- e não um ex-Gabeira qualquer.
E mais Vanda será se a ajudarmos a ser Vanda.
* Jornalista, escritor e ex-preso político. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com