Um circo para a impunidade
Essa anistia “ampla, geral e irrestrita” significou que tanto agentes da repressão como opositores do regime fascista deveriam ser igualmente perdoados. Apenas na aparência. Na prática, tratou-se de um “perdão” concedido aos agentes da repressão por eles próprios, garantindo que seus crimes contra o povo brasileiro nunca fossem julgados.
No jornal A Nova Democracia n. 11, julho de 2003, Fausto Arruda mostrou que, “no período de transição do gerenciamento militar, a esquerda brasileira, em sua quase totalidade, já havia capitulado completamente perante a reação — a anistia geral e irrestrita representou exatamente um novo pacto político-social, o da concertação, da colaboração de classes.”
No momento em que a gerência militar do Estado dava seus sinais de esgotamento e decadência, foi articulada pelos governos Geisel e Figueiredo uma transição “lenta, pacífica e gradual”, sob orientações do presidente dos EUA Jimmy Carter. Para o imperialismo estadunidense, se tratava de uma nova política de dominação, trocando subitamente a política de patrocínio das ditaduras militares pela defesa das “eleições livres” e monitoradas por instituições e governos estrangeiros – leia-se farsa eleitoral.
Assim, estava se garantindo que a gerência militar saísse de cena sem que se desse espaço de poder aos movimentos populares, para que o Estado mantivesse inalterada sua estrutura de classes e seu capitalismo burocrático, sob a mesmíssima situação de dependência na ordem imperialista. Mais um pacto de elites na história do Brasil para que tudo mudasse para que continuasse como estava, sem alterar estruturalmente o Estado das velhas oligarquias.
É o que se chama, com eufemismo, de “política de transição”. Dessa forma, a Anistia garantiu a impunidade dos agentes do Estado que praticaram os mais bárbaros crimes contra a humanidade.
Além de tudo, é impossível disfarçar que a Lei n. 6.683 foi aprovada pelo Congresso Nacional da gerência militar, um parlamento sem qualquer autonomia, formado pelos senadores biônicos, escolhidos em Colégio Eleitoral e sancionados pelos próprios militares golpistas, tudo respaldado pela Emenda Constitucional n. 8 de 1977, uma emenda fascista a uma Constituição fascista.
A jurisprudência internacional
É óbvio que a interpretação da Lei de Anistia seja revista, até porque a Constituição de 1988 é posterior a ela, e ali se assegura a responsabilidade do Estado por violação a direitos fundamentais, se diz que a tortura é crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (art. 5º, XLII), e declara a inafastabilidade do Poder Judiciário. Nesse caso, como em inúmeros outros, se diz tecnicamente que a Constituição “não recepcionou” a referida lei. Ainda mais que a lei foi uma criação do próprio governo dos torturadores, caracterizando-se o que se chama em Direito de auto-anistia.
Assim também a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José) proscreve a tortura e assegura as garantias judiciais, motivo pelo qual a Corte Interamericana ordenou o fim das leis de anistia em países do continente, em atenção ao direito à memória e à verdade, especialmente nos casos Barrios Altos (Peru, 2001), Almonacid (Chile, 2006), e La Cantuta (Peru, 2006). Essas leis “pretendem subtrair da Justiça os responsáveis por crimes contra a humanidade”, “não são verdadeiras leis, não passam de uma aberração jurídica”, afirmou o juiz Antonio Augusto Cançado Trindade (Correio Braziliense, 18/12/2008), então membro daquela Corte e hoje da Corte Internacional de Justiça em Haia, Holanda. Em adição, o membro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, José Carlos Moreira da Silva Filho, afirma que “é imoral igualar o terrorismo do Estado brasileiro à luta que se empreendeu contra ele” (www.ihu.unisinos.br, 12/01/2010).
Reconhecidos juristas e personalidades brasileiras e internacionais iniciaram um Manifesto contra a anistia aos torturadores, e o Comitê contra a Anistia aos Torturadores havia encaminhado um Apelo ao STF, relativo à ADPF 153, que já conta com mais de 18 mil assinaturas. O apelo afirma que o Brasil “é o único país da América Latina que não julgou criminalmente os carrascos da ditadura militar”, e que a manutenção de leis como essa favorece e institucionaliza “a continuidade da violência atual dos agentes do Estado”.
Portanto, a decisão do STF afronta a jurisprudência internacional. O Estado brasileiro já havia descumprido decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para investigar e punir responsáveis por torturas e outros crimes durante o regime militar. Está sendo julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos o caso Guerrilha do Araguaia (Caso n. 11.552), que aborda o desaparecimento forçado dos combatentes da guerrilha e a impunidade assegurada pela Lei de Anistia. A audiência do caso está marcada para os dias 20 e 21 de maio próximos. A vergonhosa decisão do STF será levada à Corte.
É digno de nota que os últimos governos, especialmente o governo Lula, têm se empenhado em não revelar ao povo brasileiro os arquivos da ditadura militar, em amenizar os crimes cometidos pelos torturadores e em sustentar sua impunidade com a manutenção da Lei de Anistia. É bom lembrar que as “birras” sobre o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) não partiu de setores isolados das Forças Armadas, mas de sua cúpula, o Ministro da Defesa Nelson Jobim e os comandantes militares. E ainda que oportunistas travestidos de “defensores dos direitos humanos” insistam que a Lei de Anistia é uma “página virada na História”.
Conclusão
Ao arquivar a ADPF 153 e manter a impunidade aos torturadores, o STF reafirma sua condição subserviente de um tribunal “que suportou sem protestar todas as violações à liberdade perpetradas pelos militares” (Lenio Streck, em Questões agrárias. Julgados comentados e pareceres, p. 49), mantendo o país com a condição mais atrasada na América Latina em termos de direitos humanos, assentando definitivamente a violação ao direito internacional e afrontando a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mais do que isso, institucionaliza a tortura no ordenamento jurídico brasileiro.
Júlio da Silveira Moreira é Vice-presidente da Associação Internacional dos Advogados do Povo e professor de Direito Internacional.