A Ética da Tortura

Recentemente recebi um e-mail de um amigo de Brasília, o advogado Flávio Jacopetti, assessor da Câmara de Deputados, onde manifestava sua indignação por um texto da Internet, escrito por um promotor que tecia confusas considerações jurídicas justificando o eventual uso da tortura. Às vezes, colocar uma proposta perversa como centro de uma polêmica pode conferir-lhe uma importância que não possui. Parece que discutir sobre a legitimidade da tortura fosse algo tão absurdo como debater se é possível restaurar no Brasil a escravidão dos afrodescendentes. Mas, em realidade, a tortura não é um fato tão infreqüente como a escravidão. Nossa organização tem constatado que a aplicação sistemática, porém não legalizada, de tormentos é exercida em muitos países. Portanto, acredito que vale a pena tratar este assunto. O promotor objeto de nosso mal-estar escreveu suas “teorias” num jornal jurídico chamado Carta Forense. Doravante me referirei a este texto como “O Manifesto Torturador” ou, simplesmente, “o Manifesto”.
http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=5305

O que o promotor faz é apenas compilar os pensamentos mais usuais sobre o assunto. Portanto, podemos tomá-lo como uma espécie de catecismo abreviado para auto-ajuda do “sádico socialmente eficiente”.

A tortura talvez possa ter alguma justificação quando o ser humano tenha mudado biologicamente. Se, em alguns milênios, o homem se tornar imune à eletricidade, a tortura de choque poderá ser entretenimento para voluntários que leram antigos CDs das épocas em que o ser humano sentia dor. Até que esta fantasia se realize (se for possível), vamos mostrar as falácias embutidas na justificação “bondosa” dos tormentos.

Ética e Pragmatismo

A tortura, como a pena de morte, o genocídio, etc., podem ser refutados com base em sua falta de eficiência para obter seus pretendidos objetivos: acabar com o crime ou o terrorismo. Mas este ponto é irrelevante, porque, mesmo se a tortura fosse eficiente, sua utilidade não justificaria moralmente sua aplicação. O que desejamos mostrar é que, sob qualquer circunstância, a aplicação de tormentos é imoral, desumana e patológica. Neste sentido, torturar é diferente a qualquer outra atividade humana, inclusive o homicídio, cuja finalidade pode ser suprimir uma pessoa por diversas razões, mas não necessariamente produzir sofrimento direito.

A ética estuda, analisa e eventualmente normatiza as ações morais, aquelas que determinam os limites da conduta humana considerada “lícita”. Mesmo em sociedades bastante avançadas, a ética ainda está ligada a condicionamentos sociais não explicados, ou a mandamentos religiosos ou a imposições jurídicas. Portanto, o conceito de lícito carece em geral de sentido próprio, e depende de imposições: as da tradição em geral (tabus), das religiões (pecado) e do poder político (delito).

Aceitar uma ou mais destas três visões da ética significa negar a licitude natural, que poderia ser obtida através do estudo da natureza humana e animal, da reflexão e, especialmente, da empatia. Esta visão é o que se chama ética humanista (ou humanitária) e, embora tenha séculos de existência, sua difusão tem sido mínima.

A idéia da ética humanista apareceu entre os discípulos de Epicuro, os hedonistas e os céticos, mas sem dúvida na sociedade pré-histórica milhares de pessoas deviam sentir a necessidade de normas éticas humanitárias que o sistema vigente não permitia praticar plenamente, pois os filósofos humanistas eram marginais.

Em Ocidente, a tradição humanitária teve muitos e fortes inimigos e só pode manifestar-se de vez em quando, entre uma e outra fogueira da Inquisição. Sua situação melhorou depois do Renascimento, pois uma espécie de panteísmo que se estendeu na época pela Europa permitiu que muitos pensadores pudessem honrar as exigências religiosas ao mesmo tempo em que manifestavam seus próprios sentimentos. Esse processo, porém, foi confuso e tênue, porque qualquer humanismo mais ostensivo poderia ter graves conseqüências, como aconteceu com Giordano Bruno.
Em realidade, idéias humanistas organizadas e munidas até de um programa de ação só surgiram durante Iluminismo e se consolidaram graças ao socialismo (mesmo aquele que Marx, com pouca boa vontade, chamou “utópico”), o anarquismo e o comunismo anterior a Stalin.

Uma ética humanitária, opostamente à teológica, pode manifestar-se apenas na ação concreta. Uma norma moral só pode ser cumprida ou ignorada dentro de um contexto social. Pensamentos ou sentimentos, mesmo cheios de “maldade” ou “bondade” não podem ser julgados por uma ética objetiva. É tentador sugerir que uma ética humanitária é a única ética plausível. Isto não pode ser demonstrado, pois os valores morais não são fatos cuja presença possa ser capturada experimentalmente, como na ciência, ou demonstrada teoricamente, como na matemática. Mas, é razoável pensar que normas morais que procurem o equilíbrio e bem estar dos membros do universo, estariam cumprindo o máximo que podemos exigir de um sistema ético.

Um fato contraditório é que muitas das ações visíveis usualmente aceitam violam os princípios éticos que as pessoas (quando refletem isoladamente e sem coação) acham valiosos. Este não é o caso da tortura que, em geral, é objeto de repulsa. Mas é o caso, por exemplo, da guerra. Salvo em casos de alienação coletiva (praga emocional, como dizia Wilhem Reich) a maioria das sociedades ocidentais consideram a guerra, o militarismo e os fatos sangrentos e “heróicos” como insanidades ou bizarrices.  Entretanto, em grande parte dos países as pessoas não conseguem organizar-se como para obstruir sua realização. Esse é um fenômeno evidente, porém de difícil explicação. Possivelmente, nos começos da civilização, as figuras psicopáticas eram mais fortes e estavam mais bem armadas que as pessoas saudáveis, e conseguiram implantar um controle que depois ficaria consolidado. A partir da Idade Média, isto é mais transparente. A luta contra a ética humanitária e em favor da violência dos poderes estabelecidos se consegue com uma rígida vigilância à qual contribuem militares, bispos, mestres, cavalheiros e alguns intelectuais.

O problema crucial é: como se define a finalidade a qual deve tender uma ética humanitária? Foi motivo de polêmica entre os séculos 19 e 20, a impossibilidade de estabelecer os princípios éticos com a mesma objetividade cognitiva que as leis científicas, como mencionamos antes. Isso acontece porque a opção por princípios éticos obedece a sentimentos, estados volitivos e interesses pessoais, e nem sempre a observações coletivas cujos resultados sejam equivalentes para todos os operadores envolvidos.

Este relativismo começou a ser ultrapassado pelos estudos humanistas dentro do marxismo, desde os Manuscritos de Marx e Engels, até a Escola de Frankfurt e, especialmente, de seus membros rebeldes, os psicólogos sociais Erich Fromm (1900-1980) e o notável Wilhelm Reich (1897-1957).

Para evitar o clássico maniqueísmo, deveremos dar ao bem e o mau um caráter fluente. Podemos pensar que o máximo bem se obtém com o maior equilíbrio interno (o sentimento de felicidade) e com a harmonia com os outros seres vivos e com a natureza em geral. Em fim, um objetivo é maximamente bom, quando ele tende a felicidade universal. Esta visão, herdeira de várias fontes, inclusive algumas empiristas, é oposta a que defenderam os idealistas, como Kant, onde a moralidade depende apenas de concordâncias formais.

Tendo em conta que uma ética humanitária visa a construção da felicidade universal, podemos resumir alguns aspectos que permitam entender a questão da tortura. A felicidade individual (como sustentaram os sociólogos humanistas do 2º pós-guerra) é um estado de saúde mental e emocional, que permite contribuir para a felicidade e dignidade alheia. Esta versão é uma aproximação rigorosa do conceito de solidariedade como fora intuído pelos socialistas franceses, os marxistas do século 19 e especialmente os anarquistas. A moral, então, aumenta com o grau de generosidade (daí o comunismo), com a renúncia à concorrência em prol da colaboração, e com o aumento da compreensão real do mundo, ou seja, com a renúncia a mitos, fetiches e preconceitos.

Há várias formas de quebrar a solidariedade e a ética humanitária em geral: assassinatos, execuções, guerras, competitividade em vez de cooperação, cobiça que desequilibra a igualdade social, etc. Entretanto, nada se compara à tortura. Ela é a forma mais extrema de violação da solidariedade e da dignidade humana, e os que a aplicam e defendem vivem nos níveis mais aberrantes de degradação da espécie. Se quisermos usar termos maniqueístas, a tortura é a perfeita representação do mau.

Formas de Tortura

O conceito de tortura é claro, mas sua conceituação exata gera dúvidas. Em parte, isso acontece pelo uso informal do termo no sentido de “ato violento doloroso”, como no caso da brutalidade policial, que nem sempre configura  tortura.

Organizações internacionais, escolas sociológicas e pesquisadores têm proposto suas próprias definições de “tortura”. Eu acredito que a definição deve encampar várias propriedades que atribuímos este conceito na vida diária.

  1. A tortura é um processo aplicado por agentes (torturadores) a vítimas (torturados), que não podem se defender. Um ataque contra pessoas armadas por um grupo fisicamente mais numeroso pode produzir estragos iguais ou maiores que uma sessão de tortura, mas não é o mesmo.
  2. O torturador se propõe infligir real sofrimento ao torturado. A dor física ou o dano moral não são efeitos colaterais de uma violência destinada a outra finalidade. Por exemplo, um policial quer deter um fugitivo e o ataca brutalmente com o taser. Aquilo não é o mesmo que a tortura por choque, pois o objetivo não foi (supostamente) produzir dor, mas impedir a fuga, mesmo que o dor produzido fosse exagerado.
  3. Mesmo quando o tormento aponta a um efeito que vai além do sofrimento, como obter informação, a produção de dor é essencial. A obtenção dessa informação passa sempre pela produção de sofrimento. Este não é um efeito causal, mas o componente principal.
  4. O tormento é sistemático: ele não é produto de um estado de barbárie do guardião, que, por estouro dos controles emocionais, sofre um ataque de ira e espanca indiscriminadamente um preso durante um tempo. Isso é brutalidade, e pode ser pensado como uma forma mais leve de tortura. O tormento não ocorre por quebra de controle, mas por decisão voluntária e planejada.
  5. O tormento depende de um estado duradouro de concentração no torturador. Pode acontecer que ele não sinta nada (caso da banalidade dos nazistas da que falava Hanna Arendt), ou que sinta ódio pelo réu (como era comum entre os torturadores argentinos e espanhóis), ou que tenha um surto maníaco durante o ritual. Mas nunca é uma ação casual, fragmentada ou aleatória.
Como é usual diferenciar entre sofrimento físico (como uma dor produzida pelo fogo) e o psíquico, como a angústia ou o medo, as torturas podem ser classificadas pela predominância da dor física ou da moléstia psíquica. O limite entre elas pode ser nebuloso, mas nos casos extremos é possível diferenciá-las.

Os tormentos psicológicos produzem angústia, ansiedade e depressão, mas são diferentes dos tormentos físicos. Uma tortura física, como o espancamento, produz uma dor insuportável, contra o qual a pessoa não tem defesa. É verdade que ela produz um dano psíquico imediato, mas o núcleo do sofrimento é a sensação física de dor.

Com efeito, qualquer suplício é uma humilhação, uma tentativa de destruição da integridade humana e, em decorrência, um veículo de transtornos para a vítima. É o que acontece notadamente com o estupro. Apesar de que o sexo é a atividade mais prazerosa conhecida, o fato de ser imposto pela força e contra a vontade da vítima acarreta uma sensação negativa equivalente a um estado pós-tortura.

Já o tormento puramente psíquico é mais indireto e eventualmente a pessoa pode defender-se dele. Por exemplo, uma pessoa pode ser ameaçada com desgraças futuras, pode ser cercada de boatos que descrevem um desfecho terrível para sua situação atual, com o intuito de criar medo e desespero, que são estados psicológicos. Isso foi o que fez a mídia e a direita brasileira com Cesare Battisti, e continua, em menor medida, fazendo. No entanto, esse tormento pode ser compensado, se a pessoa tiver segurança absoluta de que está sendo enganado, e não vai acontecer nada do que dizem. Em geral, então, a tortura psicológica é mais fácil de anular e mais reversível que a tortura física. Aliás, o sofrimento costuma ser menor.

Entretanto, existem casos extremos de tortura psicológica que podem produzir maior angústia que certas formas de sofrimento físico. É o que acontece no Cone Sul quando militares e policiais ameaçam com torturar os familiares de um detento, ou os submetem a tormento em sua presença. Pessoas que passaram por esta experiência ficaram transtornadas e algumas cometeram suicídio. Finalmente, há uma forma de tortura que combina aspectos físicos e psíquicos. A “lavagem” de cérebro é um tormento desse tipo. Ele pode conduzir a um colapso mental de tipo fisiológico. Já a privação do sono se gera pela proibição de um ato físico (dormir), mas têm conseqüências diretas nos dois sentidos.

Os Argumentos do Manifesto

Como o objetivo inicial deste artigo foi comentar o Manifesto Torturador, vou referir-me várias vezes aos argumentos favoráveis à tortura do promotor mencionado (que, aliás, também é veterinário, mas parece que não exerce esta profissão, o que é bom porque os animais são mais vulneráveis que os humanos).

Como me vez notar no e-mail o Flávio Jacopetti, seus argumentos não valem nada individualmente, mas pode ser interessante analisá-los porque, em conjunto, formam um pequeno texto de auto-ajuda para toda a ressaca social que apóia a tortura: a classe média fascista, os profissionais da violência, os jornalistas policiais, os ruralistas, e assim em diante. Comecemos com um apanhado geral sobre a defesa da tortura.

Quando se polemiza em favor de algumas formas “isoladas” de tortura, se utilizam com mais freqüência os argumentos práticos, de tipo “econômico”: torturando 5 podemos salvar 100, etc. Cada vez são menos frequentes, mas ainda não desapareceram, os argumentos principistas, geralmente de tipo religioso/militar: a dor purifica, o pecador precisa sofrer em sua própria carne, o martírio de seu corpo salvará sua alma.

Estas colocações aberrantes foram abertas e públicas durante a última ditadura argentina, que fez diferença com outros regimes neofascistas que pretendiam ocultar a aplicação de tormentos. Os militares afirmavam que a dor imposta pela repressão era necessária para proteger o país, ou seja, para infundir medo, paralisar, coagir. Não eram raciocínios economicistas sobre custo e benefício: torturar o inimigo era questão de princípios, de purificar o infrator pelo sangue, ou pelo menos vingar com violência idéias ou doutrinas ofensivas. A Igreja, que apoiou totalmente a ditadura foi além: a tortura e o genocídio eram atos de santificação que garantiam a liderança. O capelão militar Victorio Bonamin felicitava aos açougueiros militares por ter-se purificado “no Jordão do sangue”, e poder assim ser dignos líderes da sociedade. Expressado em forma algo menos truculenta, esta foi a posição dos quase 120 bispos, exceto quatro, dos quais um foi assassinado.

Vide, por exemplo, http://www.vientosdelsur.org/Noti15.htm

O autor do Manifesto está num meio caminho entre o principismo purificador e a “necessidade” prática de torturar para salvar vidas. Entretanto, como acontece quase sempre nos que defendem posições totalmente anti-humanitárias, em alguns momentos seus pontos de vista parecem entrar em colisão, especialmente por causa da escuridão de seus raciocínios.

No §1 enfatiza a tendência de alguns seres humanos a submeter outros a suplícios, o que ele acha que pode ser legítimo e moral em alguns casos. Aqui, “moral” significa o estipulado pela lei ou pela religião, que em muitos países acabam sendo a mesma coisa. Nos §§2 e 3, o autor baseia esta primeira reflexão nos dois exemplos mais contra-indicados para seu raciocínio. Dá um exemplo patético de um médico que tortura impiedosamente a um paciente terminal para mantê-lo vivo, enquanto o coitado sofre horrores e convoca à morte com suas escassas forças.

Mas este exemplo é o que melhor refuta nosso promotor! Ele não quer provar que existe tortura; isso todos sabemos. Quer provar que pode ser justa. Ora, o médico que se omite de aplicar a eutanásia, encarna exatamente a forma mais injusta de tortura. Esticar o sofrimento insuportável de um paciente terminal é um dos mais bárbaros e desalmados exemplos de sadismo. Mesmo se o médico não se sente gratificado pela dor produzido no paciente, ele atua dessa maneira por crenças, sagradas ou profanas, que consideram a dor humana um evento louvável. Por sinal, há uma estatística muito confiável na Índia, onde se mostra que 68% dos médicos são abertos partidários da tortura policial, e mais de 47% afirmam que colaborariam com ela.

Já no §3, o autor mostra o pouco que conhece de sexualidade, ao mencionar lojas e sites destinados ao SM entre amantes. Ter conflitos com a sexualidade, dito seja de passagem, é típico dos defensores da tortura, mas deixamos isso para um artigo posterior, mais extenso. Depois da guerra de Argélia, psicólogos franceses fizeram um estudo bastante amplo sobre criminosos, como paraquedistas, legionários, “gendarmes”, etc. A maioria eram homófobos e misóginos, mas se relacionavam com mulheres, com homens e até com animais, sempre pela via do estupro. Os poucos que tinham parceira estável tinham sido várias vezes detidos por trato cruel e violento, numa proporção 5 vezes maior que civis com os outros parâmetros iguais. Relação semelhante (4,2 vezes a 1) foi constatada entre militares do sul americano.

O promotor não entendeu que o SM erótico é uma brincadeira que atiça fantasias muito intensas, e que consegue maiores orgasmos que as fantasias normais sem nenhuma violência. Os atos “sádicos” são apenas simulados: apertos suaves, mãos amarradas, olhos vendados. Por sinal, é bom saber que a imensa maioria dos casais, inclusive os ultraliberais, é contrária mesmo a esta forma lúdica de SM, que está restrito a menos de um 5% da comunidade swinger.

Então, a pretensão de mostrar que esta “tortura” é natural no ser humano é falha. Aliás, alguns casais violentos, que extrapolam da brincadeira para um SM real, mesmo que seja leve ou moderado, podem aproximar-se a um quadro patológico. Isto, em vez de robustecer a teoria do Manifesto, favorece nossa opinião de que os torturadores de qualquer intensidade são figuras insanas.

Já dizer que os professores e os país torturam os filhos e pupilos para educá-los (§4) é um raciocínio tão primitivo que horroriza pensar que pessoas com tamanho perfil ético e intelectual podem decidir sobre assuntos tão delicados como a distribuição de justiça.

Por um jogo de retórica, o Manifesto reconhece uma forma repudiável de tortura que é a que aplicam sistematicamente os estados totalitários. O termo “totalitário” é significativo. É assim como a direita chama os regimes que eles pensam ser marxistas (como Cuba ou China, que são capitalismos de estado burocráticos), e sociedades não cristãs como Irã ou Paquistão.

De fato, nesses regimes pseudomarxistas, incluindo a União Soviética, a tortura não era mais sistemática que nos países democráticos, a ainda hoje em Cuba a brutalidade policial não é superior à americana, e está muito por baixo das atrocidades de Brasil e Argentina. Por outro lado, a selvageria dos regimes islâmicos é a mesma (ou talvez menor) que a existente em países cristãos até o século 18. Ocidente teve a sorte de gerar poderosos movimentos seculares e anticlericais, coisa que o Oriente não conseguiu.

De passagem, o autor enfatiza que o negativo da tortura não é o sofrimento, mas seu uso por estados totalitários. Isso implica, trivialmente, que estados de outro tipo podem torturar à vontade, porque o mau não está na dor, mas na transgressão á lei. Esta é uma forma típica de ética leguleia, onde o ser humano nada importa, e só é relevante a obediência ao establishment.
No fundo, a retórica do Manifesto é uma cópia servil de argumentos mais sofisticados (porém, igualmente falaciosos) que durante o começo do século 21, os neocons americanos propuseram para combater o terrorismo. Parte-se do equívoco de que o terrorismo é um fenômeno novo, absolutamente incontrolável e produzido por seres que não podem ser considerados sensíveis (como homens ou animais). Eles atuam como máquinas de matar e devem ser tratados como tais.

Em primeiro lugar, nenhum ser vivo é uma máquina, como acreditava Descartes. Em segundo lugar, o terrorismo não é novo, e apenas parece maior que antes por seus recursos tecnológicos. Em terceiro lugar, embora muitos comentadores carecem da informação básica para percebê-lo, o ataque as Torres Gêmeas no 11/09/2001 não é mais que um ato rotineiro de violência, aliás, pequeno, se comparado com a violência militar oficial. As bombas nucleares lançadas sobre a população civil do Japão cobrou vítimas imediatas numa proporção 43 vezes maior ao ataque de Al Qaida. De aí em diante, as tropas americanas produziram em toda Ásia e Oriente Médio mais de 2 milhões de vítimas. Finalmente, se ignora que a única maneira de combater o terrorismo é política, e que a “necessidade” da tortura (como no caso a ticking bomb) é apenas uma válvula para a violência represada das sociedades.

No fundo, esta ressurreição de teorias em favor da tortura é uma forma rasteira de debate que pretende camuflar objetivos muito claros. Com efeito, de maneira tortuosa, o autor acusa aos críticos da tortura de defender os tormentos quando eles são aplicados por outras ideologias. Ele quer dizer que os esquerdistas se fingem contra a tortura para poder processar os patológicos criminosos da gangue militar do período 1964-1985, mas que apóiam a tortura em países com governos de “esquerda”.

Isto é falso: os que defendem a tortura em qualquer parte do mundo e com qualquer finalidade (sejam membros das FARC ou funcionários cubanos) mostram que estão degradados ao nível da ética capitalista e, portanto, qualificá-los de marxistas é apenas provocação. Os promotores dessas idéias podem ler as críticas que os defensores de DH, incluso os definidamente de esquerda, temos feito contra a repressão (mesmo sem tortura) contra dissidentes pacíficos cubanos.

Por outro lado, esta coletânea de argumentos espúrios do passado, visa revitalizar a aplicação de tormentos, que é uma exigência de militares, policiais e outras corporações cujo motor psicológico é o sadismo e a brutalidade. Um exemplo desta apologia tortuosa (porém, com maior qualidade que o libelo do promotor), foi o filme Tropa de Elite, e seu livro base Elite da Tropa. Como pode lembrar-se, a “humanização” do torturador teve maior sucesso que outras, porque o principal autor era um antropólogo tido como ativista de DH.

As colocações do Manifesto Torturador se enquadram no pragmatismo jurídico que vingou fortemente nas sociedades fascistas e stalinistas, na Inquisição, no neoliberalismo e em outras tendências autoritárias. Houve algumas diferenças, especialmente entre o genocídio nazista e a tortura inquisitorial. Enquanto aqueles procuravam um extermínio “científico” de seus inimigos, e Bormann parabenizava o caráter “piedoso” e não sangrento da morte com gás, a Inquisição, conduzida por maníacos rituais, abundou em atos repugnantes, mutilações, esquartejamentos e suplícios sexuais. Esse espírito se conserva nas culturas islâmicas, onde é usual o apedrejamento, a deformação do rosto por ácidos e a quebra de ossos longos em crianças infratoras.

Basicamente, a visão do autor do Manifesto é que os princípios válidos são os formulados pelas leis tradicionais, e que os princípios de DH apenas podem ser aceitos quando não colidam com aquelas. Um exemplo desta perspectiva, é a bizarra citação do §22, em que convoca um jurista que deve ser figura sagrada em sua hagiografia. Este diz que “o artigo 5º da Constituição Federal não poder servir como escudo “protetivo” (sic!) contra atos ilícitos”.

Isto implica que violar os DH de um transgressor ajudará a proteger os DH do não transgressor, e também os direitos econômicos, comerciais e profissionais. O curioso é que esta proposta, além de se apoiar numa ética oportunista de favorecer o poder, tampouco tem eficiência para combater o crime.

Com efeito, propor a tortura como “necessidade” ignora que, pelo fato de ser um ato de ódio e brutalidade, não poderá conseguir uma modificação do ânimo do infrator, mas, pelo contrário, tornará o ódio um método de defesa, que o infrator usará com mais intensidade. Não é um secreto para ninguém e não deveria ser-lo para um operador de direito, que é esse processo o que transforma ladrões em assaltantes, estes em autores de latrocínios e estes eventualmente em homicidas.  

Mas, a discussão teórica sobre este ponto é desnecessária, pois os fatos são eloqüentes. As torturas aplicadas pelos americanos em Guantânamo só têm por efeito indignar ainda mais os povos invadidos que, na medida de suas forças, procuram revidar a agressão, atingindo de maneira irracional também pessoas inocentes. A paixão pela tortura de algumas tropas conduz a aumentar o ódio geral no campo de batalha e a gerar novas vítimas alheias ao conflito.

Ou seja, além de cruel, ineficiente, de degradar à sociedade que a tolera, e de afundar na desumanidade os designados para aplicá-la, a tortura gera uma reação violenta imediata, prolongando até o finito o ciclo das vinganças.

Mas, não devemos nos iludir.  Libelos como o Manifesto são comuns e fazem parte do catecismo de militares, policiais e outros grupos violentos. Não basta com mostrar suas falácias. É necessário que se reconheça à tortura o caráter que lhe fora dado em Nuremberg, de crime contra a humanidade, e devem elaborar-se leis típicas contra ela, que coloquem sua perversidade acima daquela do crime comum. Não cabe dúvida, apesar do confuso e empolgado da argumentação, que este libelo foi escrito para jogar mais uma pedra no caminho do julgamento dos criminosos militares da ditadura, uma tarefa que o governo tem medo de assumir, e possivelmente não assumirá.
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