Mas agora a Argentina nos causou inveja e admiração de verdade. A presidente Cristina Kirchner determinou a abertura dos arquivos confidenciais das Forças Armadas durante a última ditadura militar (1976-1983). O decreto diz que “passados mais de 25 anos de retorno da democracia não é possível continuar aceitando a falta de acesso a informações e documentos sob caráter de segredo de Estado ou qualquer definição de segurança que impeça o conhecimento da história recente, impedindo o direito da sociedade de conhecer seu passado.”
A partir desta semana será mais fácil para muitas famílias argentinas respirar melhor. Com mais auto-estima e a certeza de poder saber o que aconteceu com seu país, com seus filhos e entes queridos. A abertura dos arquivos militares devolve aos argentinos a tranqüilidade humana, aquele respeito profundo a que todos temos direito. O brio, devolve o brio a todos eles.
No Brasil, embora já tenhamos parte do material publicado na imprensa e alguns dossiês sobre os perseguidos abertos no Arquivo do Estado – em São Paulo – ainda falta muito a conhecer e, principalmente, saber como eram tomadas as decisões que levaram a tanta perseguição, desde 1964.
No episódio da “crise militar do Reveillon”, dias atrás, há informações e contra-informações. Dois comandantes militares e o ministro da Defesa teriam ameaçado pedir demissão por não concordarem com a Comissão da Verdade, inserida no Programa Nacional de Direitos Humanos. Teve opiniões de alguns sem-memória, outras dos sem-conhecimento, afirmações que não se confirmaram e tudo o que contém coisa que parece pré-fabricada.
Examinando pelo lado da imprensa, para começar, terá sido uma coincidência a matéria ter saído nos jornais impressos num mesmo dia, aparentemente de uma fonte só, sem que nada, mas nada mesmo, tenha saído nos sites dos próprios jornais – que costumam adiantar o noticiário do dia seguinte – nos rádios e nas TVs, que trabalham à noite normalmente? Por que esperar o dia seguinte? Um bom jornalista publica na hora, é sua obrigação.
Outra coisa interessante é a data, bem às vésperas do final do ano, quando toda a sociedade está mobilizada para a festa de Ano Novo.
No noticiário dos últimos dias, então, tivemos de tudo. Algumas TVs trataram o assunto como se o Programa Nacional de Direitos Humanos fosse um decreto que tinha entrado em vigor, e que no dia seguinte seria instalada no Brasil uma Comissão da Verdade.
Mas a falta de memória maior fica por conta das declarações e opiniões que mais parecem tiradas do “espírito” de 40 anos atrás. Falam em “investigações dos dois lados”. Que dois lados? Um deles ocupava o Estado depois de um golpe militar, com todo o aparato que podia, tinha poder de vida e morte sobre as pessoas, usava de toda a pompa e circunstância, como se esse poder incontestável viesse de alguma entidade divina, até quando faziam concessões. O “outro lado” já foi investigado, perseguido, humilhado, preso, torturado, processado, julgado por tribunais de guerra, cumpriu pena, teve exilados aos milhares, mortos covardemente na tortura, crimes falsos comunicados, e também pessoas desaparecidas. A crueldade, para muitos, parecia coisa natural. Sem esquecer da censura ao ensino, às artes e à própria imprensa, sem esquecer que existiam “crimes de pensamento” sendo julgados (!), decretos secretos publicados no Diário Oficial (!!!) e tantas coisas que ferem a inteligência humana, para dizer o mínimo.
Um fator impulsiona toda a história da humanidade: o direito à resistência à tirania. Está na Carta da ONU de 1948, assinada pelo Brasil. Está nos textos bíblicos, na Declaração de Direitos Humanos da Revolução Francesa, na Declaração da Independência norte-americana, e também no nosso “Libertae Quae Será Tamem” – Liberdade Ainda que Tardia - até hoje na bandeira de Minas Gerais e que norteou a atividade de um certo grupo subversivo de Ouro Preto no século XVIII, do qual participava um alferes, um militar que também era prático-dentista, apelidado de Tiradentes.
A memória de um povo é sagrada.