“(…) parecia que eu sabia tudo e que os mistérios do mundo se revelavam a mim nessas horas extremas.” (Nerval)
O delírio, muitas vezes, é o menor dos males… Freud o analisa e sintetiza tão bem pelo estudo das memórias de Schreber. Uma tentativa de elaborar um “auto-mundo” tolerável, o instinto de sobreviver a um eu/outro odiado. Porém, uma tentativa malograda por Lei, por fado talvez.
“Morrer… dormir… dormir… sonhar, talvez… É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando ao fim desenrolarmos toda a meada mortal, põe-nossuspensos.” (In: “Hamlet”-1601)
Romântico ou trágico?! Os dois?! Bom, voltemos a Nerval e o tema loucura, morte, vida e afins…
Creio ter experimentado um delírio maníaco sobrenatural semelhante em certos aspectos ao de Nerval. Como se fosse a defesa (ainda que arcaica) última contra a extremosa desistência da ‘Santa Esperança’ (sempre supostamente a última a morrer, eu quis passar à sua frente) . Talvez possam dizer que eu queria acabar de vez com o jogo de xadrez do filme “O Sétimo Selo” exatamente por tê-lo assistido em companhia do meu amado rejeitante… Oh! Mas fado é fado, Lei é Lei. Malogro! A sensação não é em nada agradável, um pânico infinito de tortura iminente. Pensamentos invadem a mente como Verdades Abaolutas e Inquestionáveis . Cheguei a acreditar que todos os homens queriam me estuprar e todas as mulheres queriam me matar. Vale ressaltar que eu não fazia idéia de quem fosse Freud, nem tinha ficado sabendo da existência de algo chamado Psicanálise nesse tempo. Eu era adolescente fazendo intercâmbio. Pensava que tudo que acontecia estava relacionado à minha mente e todos sabiam o que eu pensava. O que as pessoas diziam era como se fossem códigos metafóricos para me enganar. Foi assim o começo de meu delírio maníaco de que eu era santa e tudo o que houvesse feito de errado era culpa da sociedade que fazia um complô para me corromper e destruir. Acreditei firmemente que o fim do mundo estava próximo. Salvariam aqueles que conseguissem se perdoar; os demais ficariam no eterno tormento do sentimento de culpa e sofrimento extremo. Já faziam mais de seis meses que eu estava na Oceania e minha família, meu la, aqui na América. O pior foi quando me lembrei deles no delírio, com medo de algum deles não se salvar. Assim, minha desorientação no tempo, espaço, linguagem apenas foi aumentando e queimando como fogo no peito.
Nerval, por sua vez, pensou ter se tornado”muito grande e que, inundado de forças elétricas, derrubaria todo aquele que de mim se aproximasse”(s.i.c.)
Pensei que era Filha de Deus, assim como Jesus foi o Filho. E teria uma missão tão dolorosa quanto a de Jesus. No fundo, eu só conseguia pensar que daria qualquer coisa e faria qualquer coisa para que meus pais se salvassem dentro do meu delírio.
Seria tudo isso minha esforçada malograda vontade de conceituar a tal da saudade? Talvez Freud explicasse, pena que não pôde me dizer. Ê saudade!!!
“Por toda parte morria, chorava ou agonizava a imagem sofredora da Mãe eterna”(Nerval
Em meu caso, acreditei que, para conseguir assegurar que toda minha família se salvaria, ou seja, perdoariam-se e seriam redimidos, eu teria que enfrentar o que fosse para mim o mais abominável tabu. Nem tente imaginar… O fazer e o pensar confundiam-se em minha cabeça. Temi mais por minha mãe, por ela ser mais sensível, tinha o hábito de não compartilhar seus problemas e preocupações, chorava escondida no banheiro e tinha uma tendência a auto-depreciação e baixa auto-estima. O pensamento acelerava, o sentimento mais ainda. Tinha também meu pai, já meu irmão era um anjo, santo como eu – confundi tudo, mas naquele momento era essa minha realidade. Sofri dias, semanas a fio incessantemente. Conjeturo que só sobrevivi devido aos momentos de euforia na parte maníaca de Santa Salvadora no delírio. Tinha a consciência limpa, sabia que estava diferente. Ao contrário do que todos apostaram e fizeram tudo quanto exame tivesse, não havia nenhuma substância química exceto as produzidas internamente. Eu não tomava nem coca-cola. Não fumava ou bebia e nunca tinha visto ou sequer pensado em outras drogas. Na época, jogava tênis competitivo e sonhava ser profissional. Bom, é por isso que lembro tão bem, minha consciência estava completamente clara. Nem fiquei feliz ao ver meus pais e meu irmão quando estes foram me buscar, eu não os queria naquele meu mundo cruel.
“Eu” dividia-se em ora demônio ora santa. Meu humor acho que quase se solidificou, ops, brincadeirinha… É que alternavam choros agudos e sufocantes com altas gargalhadas constantemente nesse período. Ninguém entendia, muito menos eu. Nem existia tal “eu”. Quem era esse “eu”? Nerval também sofreu essa sensação de divisão, auto-irreconhecimento e o sempiterno ‘Quem sou eu’ ?
“Então é verdade(…), nós somos imortais e conservamos aqui as imagens do mundo que havíamos habitado. Que felicidade sonhar que tudo o que houvéssemos amado existirá para sempre em torno de nós!” (Nerval)
Pensei que sofreria todas as torturas que lembrei da aula de História com a professora mostrando as imagens argh. Chorei e passei a mão nos olhos. Saía sangue. Bom, nem preciso contar o que minha fértil imaginação não elaborou com tudo isso, para descobrir muito depois que era apenas um capilar que havia se rompido por eu esfregar com tanta força os olhos.
Claro que não terminarei a história, pois eis que dela faço parte e, ademais, “sempre que alguém quer esgotar um assunto esgota a paciência do leitor”(Oscar Wilde).