Amor imposto

No último dia 22 de setembro, ao mesmo tempo, nascia em todo o hemisfério sul, a primavera, com suas flores de inúmeros aromas e tons, e em Brasília, o presidente em exercício, José Alencar, juntamente com o ministro da Educação, Fernando Haddad, publicavam no Diário Oficial, na forma da Lei No 12.031/09, a obrigatoriedade da execução do Hino Nacional em todas as escolas de Ensino Fundamental, públicas e particulares do país, após projeto apresentado pelo  Deputado Lincoln Portela (PR-MG). Na verdade não se criou nova lei, o que se fez foi o remendo a duas outras já existentes, a primeira de 1930, criada durante o governo (ou melhor, ditadura disfarçada) de Getúlio Vargas, outra de 1971, durante o auge do Regime Militar (ditadura assumida), ambas tratando da execução dos hinos e do uso dos símbolos nacionais pelas instituições de ensino no Brasil.
Ao que parece, os excelentíssimos senhores de Brasília, e também demais patrícios políticos, juntamente com  outros tantos pedagogos e educadores do resto da nação, de hoje e de ontem, acreditam na tese de que o amor possa ser um sentimento imposto, através de leis, ao coração dos cidadãos. No caso, o amor à pátria. Talvez acreditem, esses senhores, que enfileirar as crianças desde a tenra idade escolar de 04 ou 05 anos, pondo-as, obrigando-as na verdade, a cantar os hinos oficiais, a plenos pulmões, frente às bandeiras de sua cidade, de seu Estado e da Nação Brasileira, as faça, desde já e no futuro, cidadãos honrados; que isso venha a lhes construir e a lhes fortalecer o caráter. Como se o caráter e a moral de alguém se moldasse a partir da recitação continua de um mantra patriótico, quase uma prece decorada, frente a um retângulo de pano colorido a que se destinou o nome de bandeira...  

Talvez não saibam, ou tenham se esquecido, esses senhores, que esse mesmo ritual pavloviano foi exaustivamente utilizado ao longo da história humana, desde as comunidades primitivas, quando a idéia era se demarcar o território pertencente a um ou a outro clã, mais tarde a uma ou a outra tribo, reino e, por fim, a uma ou a outra nação. Um hino e uma bandeira, nada mais são do que a materialização, no inconsciente coletivo, do sentimento de posse de um povo sobre um território e, logo, da inquestionável superioridade deste povo sobre outro ou sobre todos os demais povos do planeta. Para se comprovar isso, basta se acompanhar a tradução dos hinos nacionais nas copas do mundo. Não por acaso trechos como “nossos bosques tem mais vida, nossas vidas mais amores”, são a versão tupiniquim de versos de mesma conotação encontrados em TODOS os demais hinos das demais nações do resto do mundo. Não, não há mal algum em se amar e em se declamar amor à terra onde se nasça, onde se viva. O problema surge, ou começa a surgir, quando esse sentimento de amor deixa de ser livre e passa a ser obrigatório. Do amor à pátria ao patriotismo, poucos passos de dão; mas distante (e perigoso) sentido, significado, os separa. E inúmeros “lideres” mundo afora, ao longo da história, souberam usar esse sentimento de pertença, não para interesses coletivos saudáveis, mas para (através de patriotismos exacerbados em gestos simples como a execução inocente e obrigatória pelas crianças, dos hinos nacionais ao raiar do dia), exteriorizar o mais terrível dos sentimentos humanos: o ódio ao outro, especialmente ao outro distante, identificado como inimigo, por cantar outro hino, por reverenciar outra bandeira, que não a sua. Desnecessário relembrar a lavagem cerebral da Alemanha nazista, da Itália de Mussolini, da Rússia de Josef Stalin, do imperialismo norte americano. Falando dos norte americanos, nem mesmo lá, referência do ufanismo patriótico de nossos dias, o hino nacional é obrigatório. Pela constituição da terra de Obama, inclusive, é dado ao cidadão norte americano o direito de atear fogo à própria bandeira nacional, sem aplicação de pena a quem o faça. E acreditem: muitos o fazem. Mas é inegável que o número dos que a idolatram, e a hasteiam em todos os lugares imagináveis, do Capitólio, à Lua; da Lua ao satélite Pathfinder, já fora do sistema Solar; das portas de suas creches, às bombas plantadas nas terras das nações alheias, é muito maior. E estes, que são muitos, aprenderam isso desde criancinhas, nas escolas e ruas e clubes e estádios e filmes e desenhos animados e... E quantos morreram e mataram nos imensos e inúmeros campos de batalha da história humana, empunhando espadas, fuzis e bandeiras, cantando hinos de amor à sua pátria, “a mais bela entre as mais belas, a única digna de ser chamada de Nação”...  

Acreditam certos senhores políticos (sic) e certos senhores educadores (sic) tupiniquins, que impor aos nossos rebentos a memorização do nosso hino, os fará homens (e mulheres) de fato; que isso lhes moldará positivamente os destinos ou que isso, no mínimo, aperfeiçoará o seu vocabulário, o seu, o nosso português. “Recitá-lo mecanicamente não! Entendê-lo!”, defendem os tais senhores. Seria, ou será pior. É de um português já em desuso, anacrônico. Aliás... Pensando melhor... Façamos isso!  O interpretemos (juntamente com nossas crianças), e realmente estaremos fazendo um favor à nossa nação. Ao interpretar, seriamente, o nosso hino, realmente burilaremos o nosso vocabulário, forçando-o, um pouco que seja, a sair da mediocrização cavernosa dos nossos dias, quando se falar e/ou se escrever corretamente, tornou-se motivo de escárnio entre muitos de nós. Dia a dia, parece tornar-se verdade que o certo seja o falar-se e o escrever-se errado.  

Mas trabalhar o hino pode nos fazer outro grande favor: cantemos o hino, o entendendo... Será que ele faz jus à nossa história, à nossa realidade? Vejamos: “...paz no futuro e glória no passado...”, escreveu Duque Estrada. Levando-se em consideração que o hino fora oficializado em 1909, falava de “gloria passada”, já naquela época. Que glória? A dos milhões de índios exterminados, primeiro pelos portugueses e depois pelos já colonos brasileiros? Ou dos outros tantos milhões de negros arrastados e mortos, entre a África e a Terra Brazilis? Ou seria da Guerra do Paraguai, capitaneada pelo Brasil, que juntamente com a Argentina e o Uruguai quase dizimou completamente o país hermano, entre 1864 e 1870? Paz? Que paz? A paz dos coronéis que incendiaram Canudos e seus mais de 30 mil? A paz de Vargas? Ou dos generais torturadores de 1964, que foram os tenentes da “revolução” 1930? De que “gigante natureza” fala nosso hino? Da Amazônia ou do Pantanal, ambos devastados para o pasto ou para os imensos canaviais a extinguir florestas, florestas que quando não são tomadas pelos bois, ardem nas carvoarias ilegais? Que esperar do nosso futuro, espelhando-se no nosso presente, até os cotovelos imerso em lama, somente para se falar dos gabinetes e porões de Brasília, com seus atos secretos, seus senadores cassados (ou não), seus deputados federais a matar a golpes de serra elétrica, ou envolvidos em todos os tipos de negociatas, de mensalões e bingos a compra e venda indiscriminada de pareceres e votos; de acordos trevosos a aumentos em causa própria, de inúmeros crimes de lesa pátria, com aval inclusive de alguns presidentes, crimes estes por eles mesmos julgados, arquivados e esquecidos? “Ordem”? Que ordem?  

*Em tempo: a execução do Hino Nacional, a reverência às bandeiras e aos nossos Símbolos Nacionais, já são uma praxe entre os nossos políticos, e contra fatos não há argumentos: O tal mantra, quando mecanicamente executado, nada mais é do que um belo discurso moral que sai da boca suja de um fariseu hipócrita. Não melhora ninguém, não faz um povo, não constrói uma nação digna de seres humanos de bem. “Brasil, pátria amada, salve! Salve!,” 
 


Josafá Santos
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Historiador, Esp. em Educação
Vit. da Conquista, BA
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