“E eis que o anjo me disse
apertando a minha mão
entre um sorriso de dentes:
vai, bicho, desafinar
o coro dos contentes.”
Torquato Neto
Alguém tem que por limite nas crianças, fechar o bar de madrugada, decidir quem bate o pênalti na final do campeonato. Alguém tem que incentivar a Maísa a voltar para a escola, chamar a polícia quando a galerinha brinca de incendiar mendigos e espancar prostitutas. Alguém tem que avisar que o rei está nu.
.Ser anti-panglossiano, às vezes, parece sina.
Somos uma espécie ameaçada de extinção pelo tsunami neurolinguístico e a praga
dos sorrisos ortodônticos. Tenho pra mim que a pós-modernidade é filha de um
casamento de conveniência entre o parto sem dor e a medicalização das cólicas
adaptativas (”here we are now, entertain us…”). É muito provável que passemos
para a História, se é que ainda haverá um dia, como a geração que criminalizou a
angústia da escolha.
Confortam-me os pequenos sinais de resistência.
Daniela Chiaretti trai no Valor Econômico (aqui, para assinantes do jornal) o
estranhamento com que testemunhou um workshop ministrado por ambientalistas a
pecuaristas “preocupados em colocar os bois na linha”. Cita Sérgio Leitão, do
Greenpeace, para quem “o desmatamento zero é como o desenvolvimento sustentável
- de repente, todo mundo defende desde criancinha”.
“Dá alergia pensar
que o discurso lindo de defesa da Amazônia, que parece ter atingido como um raio
todo o governo e todas as lideranças do agronegócio, pode embutir uma
chantagem”, escreve. O resgate exigido chama-se pagamento por desmatamento
evitado (na versão internacional, seu apelido é REDD; por aqui, há quem o chame
de bolsa-pecuarista). Se não for pago, execute-se o
sequestrado.
Desconfio desse surto de simpatia botânica por outros
motivos. A Amazônia é “lá longe”. Preservá-la para conter a crise ambiental
dentro de um limite tolerável é uma ideia sensata, ainda que complexa. Mas temo
que para muitos se afigure como uma saída de conveniência, tipo bônus sem ônus,
almoço grátis - exceto talvez para os 20 milhões de amazônidas, carentes de boas
políticas públicas e alternativas consistentes de desenvolvimento, do tipo que
chamamos de sustentável, como a criação de reservas produtivas nas áreas já
exploradas e os sistemas de produção consorciada de alimentos e energia
defendidas por Ignacy Sachs no relatório “Amazônia - laboratõrio das
biocivilizações do futuro” (aqui, em pdf).
Criamos até um discurso de
cobertura e o repetimos como um bordão durante anos: a Amazônia responde por
mais de 70% das emissões brasileiras. Deter o desmatamento no bioma e recuperar
as áreas degradadas eximiriam a todos de olhar para nossos quintais urbanos, em
busca do que eles nos dizem sobre o modo como produzimos e
consumimos.
Bem que José Eli da Veiga avisou (aqui, em pdf - http://www.zeeli.pro.br/artigos_valor/%5b121%5d%20-%20Bonde%20do%20carbono%20-%2009jun09.pdf).
Ao ler com atenção o inventário de emissões brasileiras publicado há quinze anos
(!!!), ele flagrou o erro crasso por trás do disparate que se fez
bordão.
“O que ali está estampado com muita clareza é que 75,4% das
emissões do Brasil de 1994 podiam ser atribuídas ao conjunto das ‘mudanças no
uso da terra e florestas’ (MUTF), no qual deviam ser creditadas aos
desflorestamentos 96% das emissões líquidas. E desse subtotal, somente 59%
cabiam ao bioma amazônico (26% ao Cerrado, 6% à Mata Atlântica, 5% à Caatinga e
4% ao Pantanal). O que significa que, em 1994, tão-somente 42,7% do total das
emissões brasileiras totais podiam ser atribuídas a desmatamentos
amazônicos.”
De lá pra cá, as emissões extra-MUTF (transportes, energia e
indústria em destaque) cresceram em torno de 45%, segundo cálculos do MCT
mencionados por Veiga em junho e divulgados pelo governo na semana passada.
Some-se a isso a explosão do desmatamento no Cerrado, por conta da expansão da
fronteira agrícola, e temos no centro do palco o núcleo duro da economia
brasileira.
Amazônia, carros flex, sacolinhas de pano e pensamento
positivo serão suficientes? Veiga sabe que não. “Enquanto os outros grandes
emissores se empenharão na busca de inovações que poderão descarbonizar os
setores secundário e terciário, mais uma vez o Brasil será estimulado a dormir
em berço esplêndido. A concentrar-se no barato abatimento de emissões por
redução de desmatamento e modernização agropecuária, para depois ficar ainda
mais dependente das famosas transferências de tecnologia.”
“Que o céu nos
proteja dos otimistas”, radicaliza a jornalista francesa Mona Chollet, editora
de Peripheries.net (http://www.peripheries.net/), em artigo publicado pelo Le
Monde Diplomatique Brasil (edição de setembro, nas bancas). Para ela, não
deveríamos nos contentar com soluções técnicas face ao que chama de “encontro
da espécie com os limites da biosfera” (très chic: adoro os franceses!!!). “O
que deve e pode ser revisado é todo o nosso modo de pensar, além da
representação que fazemos da espécie humana e de seu lugar no mundo”.
Sei
não… É muita assadura para bumbuns habituados a não tolerar o desconforto, penso
eu. Mudanças desse porte costumam ser empreendidas pelos que sentem não ter mais
nada a perder. E esse não parece (ainda?) ser o nosso caso.
De qualquer
modo, alguém tem que preservar os chatos. São o único antídoto de que dispomos
ao pensamento mágico com que tentamos curvar a realidade aos nossos desejos
infantis.
Num tempo de consensos midiáticos, em que pecuaristas fingem
abraçar árvores e ambientalistas aplaudem, fico com a sensação de que morreremos
todos abraçados aos bois. Será uma boa oportunidade para testar a premissa
pós-moderna vislumbrada por Torquato Neto, poeta, chato e suicida, com quem abri
e fecharei:
“Leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na
hora do perigo é o homem, nem que seja o boi.”
* José Maurício de
Oliveira é jornalista, diretor de Redação do Mercado Ético. Foto:
Leticia Freire
(Envolverde/Mercado Ético)