Hoje, 17 de fevereiro, mamãe faria aniversário!
Já pensaram meu pai fazendeiro? Uma vez papai comprou um cavalo muito grande e o colocou no bequinho entre nossa casa (a casa onde nasci) e a do Coronel Silvino Pereira. O cavalo derrubou o muro - foi um deus nos acuda!
Tenho a impressão de que papai gostaria muito de possuir uma fazenda. Com esse cavalo, apagou um pouco o desejo - detestava incomodar alguém, ainda mais o Coronel, o Camargo Correia da época, com o monopólio das obras da Vitória Minas na região – uma estrada de ferro que liga o porto de Vitória à ferrífera Itabira – aliás, a mineração acabou com a natureza do município e deixou por lá uma paisagem lunar.
Para se ter uma idéia, apenas um pedaço de muro até a metade do terreno - a outra metade nem cerca havia - divisava nossos quintais. Do lado da casa do Coronel havia um tanque cuja torneira jorrava água dia e noite, e não podíamos pegar nem sequer um balde de água - buscávamos no Rio Piracicaba - para beber, para o banho, para a comida e para lavar roupas. Tinha eu uns quatro anos – aos cinco nós nos mudamos dali - e via a água escorrer sem parar e me dava vontade de colocar a mão naquela água, e não podia; aquilo me marcou, pois desde então percebi o poder e a indiferença dos poderosos. Hoje vejo esse mesmo poder nas multinacionais, nos banqueiros que dominam os políticos e os poderosos do mundo, indiferentes à miséria, à fome e à sede de grande parte da humanidade: nós os miseráveis.
Uma pergunta que sempre quis fazer a mamãe e acabei não a fazendo: porque ela ainda deu filhos para a família do Coronel ser madrinha...
Papai fazendeiro, com certeza iríamos todo fim de semana e feriados para a fazenda - que sonho! Papai gostava de passear com os filhos. Teríamos de ir a pé, pois carro não havia - só dois na região: um do Dr. Joaquim, Superintendente da Belgo Mineira, e o outro do Dr. Albeny, médico. Depois de um tempo o Dr. Rubens, médico - andava de charrete - e o Joaquim Vieira compraram o seu.
Papai lia jornais e assinava a revista "Em Guarda", uma linda publicação americana com fotos da Segunda Guerra Mundial, assim como as "Seleções", que eu me deliciava em folheá-las. Nunca vi uma revista infantil! Ouvia-se falar na quantidade de carros que a Ford fabricava, uns cinco mil por dia. Quando construiu a nova casa, começada em 1942, mudamos em 1943, papai deixou passagem lateral, para que os filhos, no futuro, colocassem os carros. Todos zombavam. Ele ria íntima e orgulhosamente... de todos...
Iríamos para a fazenda, desde os mais velhos aos mais novos. Mamãe em casa cuidando dos que ficassem. Fácil... só faltava a fazenda...
Passávamos por época de vacas gordas, com a loja bem e mais o trabalho incansável da mamãe, ajudando em tudo. O movimento do comércio variava muito, dependendo de ter ou não ter contrato de fornecimento para os empregados da Belgo Mineira - nem sempre possível. Movimento constante e ótimo com os bons clientes da Vitória Minas. O sonho poderia ser uma realidade.
Apareceu por lá o compadre Getúlio. Tinha bela fazenda - e por perto. Conversou bastante com papai. Papai confabulou com a mamãe e o compadre Getúlio saiu levando bastante dinheiro no embornal. Não havia sacola ou bolsa - só embornal (imborná ou borná, como diria o roceiro) e cesta de palha de milho ou couro, desconhecia-se o plástico. Os brinquedos feitos de madeira e lata.
Algum tempo passado, eis de novo o compadre Getúlio.
Começou expondo as inúmeras dificuldades financeiras que suportava.
Mamãe, meio de lado, atenta.
Compadre Getúlio falava bem, generoso nas palavras - saiam-lhe fáceis. Mamãe ouvia. E finalizou:
- Pois é, compadre José Franco, como peguei a quantia razoável de dinheiro de você e da comadre, com a promessa de, se não pagasse ou não tivesse como pagar, em noventa dias, eu passaria a fazenda para vocês, vim pra gente arrumar a papelada agora. É só ir ao cartório do compadre Roque e assino a escritura.
É bom lembrar a inexistência de um documento assinado por ele - tudo na base da conversa e confianças mútuas - um fio do bigode garantia, como afirmavam os antigos.
- Compadre Getúlio, podemos esperar mais um pouco, mais algum tempo - disse-lhe papai - e, não sendo possível o pagamento, o Senhor vem aqui e a gente recebe a fazenda.
Mamãe, firme como sempre, de repente entrou na conversa:
- Compadre Getúlio, o Zé Franco vai ficar com a fazenda e todos os dias possíveis levará os meninos pra lá. Eu não vou. Se um ou mais dos meninos machucar, não tem como vir rápido, só a pé. Lá não tem remédios e muito menos médico...
Decidida, arrematou:
- Fique com a fazenda de graça... não precisa mais pagar!
Virou as costas e saiu.
Sempre pensando nos filhos!
Essa era a minha MÃE!
Um pequeno machucado num dos filhos valia mais que uma grande fazenda!
006 – O terço da mamãe
Mamãe, diariamente, ia a todas as missas possíveis e impossíveis. Seu maior orgulho: ter um filho seminarista. Seu maior sonho: ver o filho ordenar-se sacerdote – mais tarde realizado.
À noite, mamãe reunia a família em seu quarto para rezar o terço. Rezávamos com devoção e bem compenetrados – a maioria deitada na cama de casal – e há coisa melhor que a cama da mamãe?... e cabe todo mundo!
De quando em vez ela resolvia rezar todo o rosário – três terços.
O problema maior era quando mamãe começava a rezar três Ave-Marias e um Pai-Nosso para cada uma das milhares de intenções – acabavam jamais! Continuava ela firme e forte, e a gente doida para o término daquela ladainha. E por falar em ladainha, as centenas de Santos e rogai-por-nós invocados encompridavam ainda mais a interminável oração. Quando a maioria caía no sono, mamãe parava. Que alívio!
Único consolo: deitar na cama dela! A cama da mamãe é uma delícia!...
Benedito Franco