(Henry Ford)
- Largada
Depois de tanto planejamento, treinamento exaustivo, chegou, enfim, o dia de iniciarmos aquela que talvez venha a ser a maior aventura de minha vida. Saímos com um atraso de quase duas horas em decorrência de alguns aspectos logísticos. A noite anterior foi sem problemas, dormi bem. Até a largada eu estava reagindo como se estivesse hipnotizado pelas circunstâncias. Ao iniciar a jornada, porém, entrei em estado de êxtase profundo, era um sonho que se tornava realidade. A velocidade da correnteza ultrapassava os 5,5 nós (10 km/h). O Solimões mostrava sua força, sua pujança. À nossa frente uma ilha de apenas 15 anos de idade mostrava a dinâmica de um rio em constante evolução.
Navegar, a remo, pelas mesmas águas de um Pedro Teixeira, era um privilégio para poucos e eu tinha plena consciência disso.
- À espera de um milagre
Inicio minha jornada volvendo os olhos aos céus e suplicando ao Grande Arquiteto do Universo que estenda suas bênçãos à minha querida esposa. Só ele poderá fazer retornar ao seu rostinho aquela jovialidade e alegria que embalou nossos dias até ser vitimada pela doença.
- Os golfinhos e o seu Raimundo
Meus amigos, contrariando o bom senso de acompanhar o navegador, ultrapassaram-me e estão a uns 300 metros à jusante. Ao chegar no extremo noroeste da Ilha de Aramacá, os botos (cinzentos) me brindaram com suas evoluções. Era, pelo menos, um casal com dois filhotes. Avistei um flutuante ancorado na Ilha e me dirigi até ele. Fomos recebidos pelo seu Raimundo que, cortesmente, exibiu sua galeria de troféus de 'canoagem' e fez questão de pilotar um de nossos caiaques. Ultrapassamos a extremidade Sudeste da Ilha e ancoramos na margem esquerda do Rio. Descansamos um pouco, fotografei algumas embarcações e borboletas. Os pontos que eu locara, pelo Google Earth no GPS, estavam totalmente errados. Um erro de aproximadamente 2 km à sudeste de onde deveriam estar. Descartei o GPS, agora usando-o apenas como velocímetro e passei a utilizar a bússola e as cópias dos mapas do Google. A navegação continuou fácil sem qualquer dificuldade.
- Ilha de Arariá
Ao sul da Ilha de Araria, aportamos num grande banco de areia para repouso. A Fabíola ficou preocupada com as enormes vespas que atacavam seu estoque de frutas e queria partir imediatamente. Afastei as vespas do caiaque e fui navegando de 'bubuia' para tirar algumas fotografias à jusante e retornar para continuarmos a navegação juntos. A forte correnteza me levou até a margem direita da ilha. Quando retornava para alcançar meus parceiros, um piloto que descia o rio me informou que os mesmos estavam descendo pelo lado esquerdo da ilha. Resolvi esperá-los no extremo leste da ilha. Lá chegando, as informações eram as mais desencontradas: uns afirmavam tê-los visto do lado esquerdo da ilha e outros do lado direito. Parti rumo a Feijoal.
- Comunidade Feijoal
O contato que havia feito com o encarregado da FUNAI em Tabatinga, o sr Davi, foi de muita valia. Procurei o Professor Henrique e esse conseguiu que ficássemos instalados na FUNAI, com direito a ar condicionado, inclusive. Meus companheiros chegaram uma hora mais tarde, quando já estávamos providenciando uma equipe de resgate. Tomamos um bom banho e entrevistei as autoridades da comunidade, o cacique João, o encarregado da Funai, sr Arsênio, o professor Henrique, dentre outros.
Os problemas relatados foram, como era de se esperar, referentes à segurança, em decorrência da ação de traficantes e exploradores da mata nativa dentro da reserva. A falta de medicação no posto da FUNASA e a dificuldade do acesso ao Ensino Superior para os concludentes do 3º ano do Ensino Médio. Os pontos fortes foram o respeito às lideranças, a limpeza da comunidade, o sistema de refrigeração na escola de Ensino Fundamental, a água tratada e a energia elétrica.
- Um jantar especial
Compramos uns peixes e o Arsênio nos instou a que o mesmo fosse preparado na sua casa. O cacique João, evangélico, filho de pai paraense e mãe Tikuna, fez-se presente e antes da refeição, encabeçou uma prece em agradecimento ao Senhor. Sentados, cerimoniosamente, no chão, consumimos um delicioso jantar preparado pela tia de Arsênio. Durante a refeição, provoquei o cacique para que nos relatasse algumas de suas lendas e costumes. Ele nos contou como foi criada a raça tikuna (que deixaremos para relatar em um artigo exclusivo) e a festa da Moça Nova.
- Festa da Moça Nova
A Festa da Moça Nova, ou seja, da menina que se torna mulher. Os ticunas consideram a fase da puberdade muito perigosa, período em que os jovens podem ser influenciados por espíritos maus. O ritual iniciava as meninas-moças na vida adulta. A partir da primeira menstruação, a menina é conduzida para um local reservado, construído para este fim com esteiras ou cortinados, onde permanecerá enclausurada por um longo período só podendo se comunicar com a mãe e a tia paterna. Neste período, deverá aprender o preparo de cestas, redes e esteiras.
Conclusão
É triste verificar que, apesar dos esforços das lideranças, os costumes venham sendo relegados a segundo plano e muitos indígenas reneguem sua descendência nativa. O artesanato é restrito a umas poucas senhoras de idade e não está sendo repassado às crianças. Não consegui, apesar de todos os esforços, conhecer uma única pessoa que dominasse o conhecimento da cerâmica tikuna. Da mesma forma, ninguém detinha o conhecimento de ervas medicinais. A modernidade chegou implacável ao território dos tikuna e em quase todas as residências observamos a televisão ocupar o espaço reservado aos anciãos na formação e doutrinação dos mais jovens.
(*) Coronel de Engenharia; professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA); membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB); presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)
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