Nossacrise

Segundo Maquiavel, o mal deve ser feito de uma vez e o bem aos poucos. Até aí, nenhuma novidade. Há um corolário interessante, cuja paternidade pretendo assumir, a não ser que surjam poderosas evidências em contrário: Quando um mal ocorre, seu advento deve ser reconhecido aos poucos. É a velha história do sapo que aceitará ser cozinhado com aumentos progressivos da temperatura do recipiente no qual foi colocado, mas pularia fora de uma panela de água fervente. O reconhecimento gradual pode ter como origem falta de capacidade analítica, ou, como no nosso caso, um superior conhecimento por parte do pastor da natureza sensível do seu rebanho. Travestido de estudioso dos fenômenos oceânicos, Nossopresidente – aqui torno a afirmar que se o Canard Enchainé, até hoje se refere a De Gaulle como Mongénéral, não há mal algum em usar o neologismo Nossopresidente – seguiu esse procedimento frente à crise que, cruzou o Atlântico – após fustigar os EUA – ricocheteou no Velho Mundo e está "bumerangando" em direção ao Brasil.

Inicialmente, de acordo com a sabedoria Planaltina, todo e qualquer pedido de esclarecimento relativo a esse desarranjo sem grande importância deveria ser dirigido ao senhor Bush. Presume-se que deveria ser ao marido de Laura, não da Barbara. A seguir, e é nesse ponto que entram as noções de oceanografia, o fenômeno, visto do observatório do Planalto foi reduzido à condição de "marolinha".

Dizem os entendidos em Administração que mais importante do que resolver um problema é apontar os culpados pela sua ocorrência – isso distrai os ouvintes e torna-os partícipes da onda de indignação que não serve para coisa alguma a não ser aceitar, sob protestos, uma das famosas verdades de Murphy: "Se há possibilidade de diversas coisas saírem errado, então dará errado aquela que causar maior prejuízo". Profundamente intuitivo, Nossopresidente voltou seu lança-chamas oratório contara os especuladores do cassino mundial, ou algo assim. Num ponto, ele está coberto de razão. Inúmeras falhas estão na origem desse vendaval econômico. Ocorre que amaldiçoar causas não cura efeitos. Vociferar não atrasará a chegada da crise.

Assim como os ventos favoráveis da conjuntura mundial nada têm a ver com as proezas do Nossogoverno, a atual borrasca tem de ser enfrentada como um fenômeno exógeno a caminho de sua naturalização – não há como mudar de planeta, pelo menos, no curto prazo. É infinitamente mais cômodo declarar que a bonança foi "made in Brazil" e a procela, "made in USA", mas de prático, se a ação se limitar à adoção dessas posturas filosóficas, é possível que o saldo seja algo "nunca antes visto neste País".

O Brasil possui a grande vantagem de entrar nessa chuvarada com a economia em forma e o guarda-chuva das reservas, aberto. Sem contar que o bravo escudeiro Guido já declarou que faremos uso inteligente das nossas reservas. A afirmação causa alguma perplexidade. Teria por um instante Nossoescudeiro encarado a possibilidade de um uso idiota das reservas?

Tanto na reunião preparatória da reunião do G 20, quanto na própria conferência, Nossasautoridades, lançaram desnecessários alertas quanto à gravidade da situação, conclamando os presentes para a tomada de atitudes de cuja necessidade poucos duvidariam. Considerar as 47 boas intenções redigidas numa linguagem diplomaticamente oca como triunfo de Nossadiplomacia é um produto de marketing político a ser deglutido com cuidado.

No momento, estamos num estágio superior de interpretação dos recentes desastres, ao admitir, vagamente constrangidos, que temos um convidado indesejável: a crise. Não vale a pena listar todos os argumentos a favor dessa desconfortável evidência. Claro se "Os outros estão em crise, recessão, depressão, o diabo, nosso comércio com eles encolherá, se a escassez de linhas de crédito persistir, encolherá mais ainda. Com excesso de produção não colocada, o desemprego torna-se ameaçador. Desempregado tende a não quitar suas dívidas, não por perversidade, por necessidade. Falar em liquidez "empoçada" não resolve. A uma menor atividade econômica, corresponde uma menor arrecadação de tributos, momento indicado para deixar de falar na urgência da criação do delirante fundo Soberano. Com a desaceleração da Economia mundial, o galope das cotações das commodities se dá no sentido a nós desfavorável . Com o barril de petróleo a menos de 60 dólares, falar na exploração do "mar do petróleo" na camada pré-sal passa a ter uma menor urgência etc. Se o consumo continuar caindo ou, na expressão de Paul Krugman "os consumidores se renderam", dificilmente aumentará , mesmo se Nossopresidente conclamar-nos a comprar casa, carro ou até o primeiro sutiã para ajudar construtoras, montadoras e a Valisère, nesta ordem.

Um erro trágico consiste em escolher dados errados para se chegar a um diagnóstico. Com efeito, pouco importa analisar o crescimento de nossa economia no ano. É preciso reagir aos dados recentes. Ou seja, de nada serve olhar o eletrocardiograma do paciente no mês de abril, se ele está com ameaça de infarto AGORA. Em "futebolês", de nada adianta saber que já ganhamos de um time no início do ano, se, com 0x0 no placar, estamos jogando com um jogador (Zé Exportador) contundido, esgotamos as substituições e o outro time tem um pênalti a seu favor. Será preciso tomar muito mais medidas do que as que até agora foram adotadas para atenuar efeitos, ao que tudo indica, catastróficos.

Para quem se lembra do filme "Being there", que por aqui passou com o título "Muito além do jardim", Peter Sellers, no papel do jardineiro Chance, proferia uma série de obviedades que deixava os demais em estado de pura e incontida admiração. Frases como: Depois do inverno virá a primavera" tornaram-no o eleito do Presidente dos USA para ser seu sucessor.

Mais interessante ainda, quando uma realidade não lhe convinha, o jardineiro Chance, fanático por TV, procurava eliminá-la clicando no seu controle remoto.

Talvez não seja má idéia tentar sintonizar outro canal. Quem sabe, lá, o furacão Obama e os tigres asiáticos estejam espantando a crise.


Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, é autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar` e o recente livro/peça ´Um Triângulo de Bermudas`. (Ed. Totalidade). Confira nas livrarias Cultura (www.livrariacultura.com.br), Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Laselva (www.laselva.com.br) e Siciliano (www.siciliano.com.br).| E-mail do autor: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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