O modus operandi é mandarem bala em civis por dá-lá-aquela-palha e depois apresentarem-nos como guerrilheiros mortos em combate.
Que falta de imaginação! Repetem até hoje as práticas que se generalizaram na ditadura brasileira durante a década de 1970. O episódio mais emblemático, dentre os muitos e muitos ocorridos durante aqueles anos sinistros, foi o de uma execução de militantes capturados graças à colaboração do cabo Anselmo com a repressão. Motivo: a farsa foi montada de forma negligente e facilmente desmascarada depois, quando o Brasil saiu das trevas e voltou à civilização.
Eis como Élio Gaspari a relatou em A Ditadura Escancarada:
- A última operação de Anselmo, na primeira semana de janeiro de 1973, (...) resultou numa das maiores e mais cruéis chacinas da ditadura. Um combinado de oficiais do GTE e do DOPS paulista matou, no Recife, seis quadros da VPR. Capturados em pelo menos quatro lugares diferentes, apareceram numa pobre chácara da periferia. Lá, segundo a versão oficial, deu-se um tiroteio (...). Os mortos da VPR teriam disparado dezoito tiros, sem acertar um só. Receberam 26, catorze na cabeça. (...) A advogada Mércia de Albuquerque Ferreira viu os cadáveres no necrotério. Estavam brutalmente desfigurados.
A Rota, tida nos anos de chumbo como unidade exterminadora da PM paulista, também era useira e vezeira em recorrer ao chamado falso positivo (relatar como resistência à prisão as execuções de pessoas indefesas).
Na Carta Aberta ao Governador José Serra por mim divulgada na semana passada, eu fiz uma referência a essa sistemática:
- O excelente livro Rota 66, do jornalista Caco Barcellos, documentou 4.200 casos de assassinatos cometidos pela Rota nas décadas de 1970 e 1980, tendo como vítimas, quase sempre, jovens pobres, pardos e negros (muitas vezes sem antecedentes criminais). Os inocentes atingidos por engano seriam em maior número do que os verdadeiros criminosos - cuja condição, claro, não eximia os policiais do dever de entregá-los à Justiça, ao invés de simplesmente abatê-los, como faziam.
Aparentemente, boa parte de nossa esquerda não anda mais preocupada com as violações de direitos humanos cometidas contra os zés manes da vida, pois ignorou olimpicamente minhas cobranças ao Serra.
Também está se lixando para o fato de que a Rota mantenha até hoje no seu site elogios à própria atuação na derrubada do presidente constitucional do Brasil em 1964 e ao papel que desempenhou na repressão àqueles que, como eu, resistiam à tirania.
Nem mesmo confere a devida importância ao fato de que um ministro do Governo Lula faz elogios públicos ao arbítrio e a União se presta a defender carrascos como Brilhante Ustra.
Só o denuncia frouxamente e sem extrair a conclusão de que tal governo fez uma opção definitiva nos embates entre os defensores da justiça histórica e os que advogam a impunidade eterna das atrocidades perpetradas pela ditadura de 1964/85, alinhando-se com os segundos. Daí ser quase sempre omitido nesses textos anódinos o fato de que a maioria dos integrantes do Ministério de Lula respalda a posição de Nelson Jobim contra a de Tarso Genro...
Então, prevê-se uma enxurrada de artigos repercutindo as acusações (pertinentes e necessárias, ressalte-se) da ONU ao governo colombiano, com destaque muito maior do que o conferido à interpelação ao Brasil na OEA, por estar acobertando as práticas hediondas do passado.
Os dependentes das migalhas dos banquetes palacianos estão sempre prontos a satanizar o governo do colombiano Álvaro Uribe, mas nunca aplicam os mesmos critérios ao governo de Lula – embora ambos sejam, igualmente, fiéis seguidores da ortodoxia neoliberal e capachos contumazes dos EUA.
* Celso Lungaretti, 58 anos, é jornalista, escritor e ex-preso político. Mantém os blogs O Rebate, em que disponibiliza textos destinados a público mais amplo; e Náufrago da Utopia, no qual comenta os últimos acontecimentos.
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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