Também era homem de brio, que não se acovardava diante do certo. Diria apenas: “Vá em frente, meu irmão. Tu tá no teu direito...”. Será que diria isso? Saberia dentro de algumas horas, uma vez que logo mais, estariam cara a cara...frente a frente
E, diante do inevitável, riu-se. Riu-se ao lembrar do desespero de Zuleide quando ela soube que seus dois homens se encontrariam na mesma prisão. A doida só sossegou depois de ter ido pedir arrego pro tal de juiz: “Esse desgraçado não vai te ferrar, ele é que vai ficar lascado! Ele que não se meta à besta!...Sei de um monte de coisas. Já contei boa parte hoje. Vão reabrir o processo e vão transferir esse cara para outro presídio, um daqueles de segurança máxima. De lá não sai mais. “ Nélson riu-se novamente. Só que dessa vez de orgulho. Orgulho por saber que, entre os dois, Zuleide preferia a ele. Sim, ela o amava. E dava até gosto morrer por uma mulher como ela. A sua Zuleide – pobre Zuleide que Severino menosprezara meses a fio, ao se exibir diante de toda a vizinhança com a tal de Rosinha, aquela sem-vergonha gostosa E se fosse só a Rô, mas tinha também a Malu .
Enfim, quem era ele para julgar o amigo. Nem era mais seu amigo. Cada um sabe de si. Não era certo Severino humilhar Zuleide, assim como também não era certo ela ter mudado pro barraco dele assim que o outro fora preso. Severino soubera de imediato e já mandara recado de morte. Nélson até achou graça no começo. Era dele que Zuleide gostava, não do amigo safado. Além de safado, atrás das grades, o que era bem melhor. Mas essa vida desgraçada, só prega peças. Pegaram o Nélson e não foi por ter apagado Fábio. Pegaram por ter se envolvido numa briga boba de bar, durante a qual sobrou pro dono da espelunca. A polícia chegou, revistou todo mundo, antes que Nélson conseguisse se livrar dos papelotes. Aí, foi aquela merda. Foram parar na delegacia. Algum desgraçado o reconheceu e pronto. Como a delegacia já estava cheia, mandaram para o xilindró. Só conseguira falar uma vez com Zuleide e foi quando ela lhe disse para não ficar preocupado. Estava recordando tudo aquilo, sabendo que não viria coisa da boa. Agora, não tinha mais escolha.
Na chegada à penitenciária, já no pátio, na hora do passeio, Nélson buscou entre centenas de olhares desconhecidos, aquele que lhe era familiar. E, quando o encontrou, e tão próximo e tão igualmente ansioso como o dele, a poucos metros de onde estava, sentiu toda a tranqüilidade ir embora. Diante daquele que fora seu velho amigo e futuro algoz, teve medo. Não, ainda não estava preparado para morrer. Morrer? Ora, o outro que se danasse. Breve, depois das revelações da antiga companheira, iriam transferi-lo. Era só ficar esperto.
Severino se aproximou dele. Sabia o que iria ouvir.
– Ora, ora, meu grande amigo Nerção. Ficou com saudades de mim, é? Pois eu te digo. Fique de olho bem aberto. No refeitório, durante o passeio, no chuveiro, na hora de dormir, quando menos esperar, vai ter o que merece. Pode escrever.
– Severino, sempre fui legal com você – Nélson sentiu sua voz tremer um pouco. Outros estavam chegando, formando uma roda.– Zuleide não gosta mais de você. Ela não quis mais ser capacho...
– Fique de olho aberto, só tenho isso para dizer. Você não vai durar aqui. Sabe disso. Vai ter o que merece.
– Tá certo. Pensa que vai me meter medo. Pois tá enganado. Mulher de amigo é homem para mim. Mas para você ela não era mulher, era um brinquedo. Ela é minha agora.– Ficaram se encarando, punhos cerrados, até que o Cido, um grandalhão que estava lá por ter matado um policial, pegou o Severino pela cintura e cochichou-lhe alguma coisa. Severino fez que sim e murmurou:
– Fique... esperto,meu.
Começa que Nélson não era de ter medo. Cuidadoso ele sempre fora. Era só não bobear. O outro não iria partir para briga, pois, se o fizesse, franzino como era, iria se dar muito mal. Os dias foram passando. Nélson já vinha perdendo o medo. Quando cruzava com Severino, cada um fazia de conta que não estava nem aí, sem perder o outro de vista. Chegou o domingo.
Dia de visita. Nélson esperou que Zuleide fosse encontrá-lo. Até pensou tê-la avistado, mas, pelo jeito, enganara-se. Recebeu a visita da irmã. Até tentou saber notícias, só que a irmã ficou tagarelando, mas nada falou da companheira. Ficou na mesma.
No dia seguinte, durante o passeio, Severino se aproximou dele.
– Nerção, véio de guerra, vamos fazer as pazes. É bobagem a gente que sempre andamos unidos, virar inimigo assim, por um rabo-de-saia. Né?
– Também acho. Se você quiser, taí, eu topo.
– Vamos apertar as mãos, companheiro.
Que coisa estranha. Muito estranha mesmo.
– Sabe, a Zu esteve ontem aqui. Ela esteve comigo.
Aquilo doeu. Doeu mais que o golpe de faca que o deixou caído de joelhos. Levou as mãos à barriga, tentando desesperadamente estancar o sangue. A voz do outro chegava bem fraquinha aos seus ouvidos. Foi até melhor nem tê-lo ouvido dizer:
– Foi ela que me trouxe a faca.
Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, é autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar` e o recente livro/peça ´Um Triângulo de Bermudas`. (Ed. Totalidade). Confira nas livrarias Cultura (www.livrariacultura.com.br), Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Laselva (www.laselva.com.br) e Siciliano (www.siciliano.com.br).| E-mail do autor: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.