Alta fidelidade

Encolhido na caçamba da viatura, algemas nas mãos, olhar baixo, mirando as unhas sujas e meio amareladas dos pés, Nélson ia silencioso, deslizando, sem poder reagir pela trilha do destino. Desprovido de forças para se debater, estava entregue. Àquela altura, pouco ou quase nada esperava da vida. Pego pelos policias, sabia que não duraria muito na prisão. Conhecia Severino desde sempre. Desde sempre, companheiros inseparáveis nas brincadeiras de uma infância miserável, nos pequenos roubos da adolescência e, mais tarde, no envolvimento com o tráfico. Severino, mais ousado, se tornara chefão e fora preso por causa de um dedo-duro, Fábio. Ele, Nélson, menos ambicioso, ia na carona de Severino. Mas era homem. Muito macho. O Fábio duvidara disso e nem tivera tempo de se arrepender depois de levar os três balaços mais que merecidos. Alcagüete tem de morrer. Pior pecado, só roubar a mulher do amigo em cana. Que besteira ter se enrolado assim. Nélson sabia muito bem que Severino não era homem de deixar passar afronta como aquela. Afronta de honra tinha de ser paga com sangue. O seu sangue. Era o certo e assim haveria de ser. Confrontado com o outro, não faria a menor menção de reagir.
Também era homem de brio, que não se acovardava diante do certo. Diria apenas: “Vá em frente, meu irmão. Tu tá no teu direito...”. Será que diria isso? Saberia dentro de algumas horas, uma vez que logo mais, estariam cara a cara...frente a frente
E, diante do inevitável, riu-se. Riu-se ao lembrar do desespero de Zuleide quando ela soube que seus dois homens se encontrariam na mesma prisão. A doida só sossegou depois de ter ido pedir arrego pro tal de juiz: “Esse desgraçado não vai te ferrar, ele é que vai ficar lascado! Ele que não se meta à besta!...Sei de um monte de coisas. Já contei boa parte hoje. Vão reabrir o processo e vão transferir esse cara para outro presídio, um daqueles de segurança máxima. De lá não sai mais. “ Nélson riu-se novamente. Só que dessa vez de orgulho. Orgulho por saber que, entre os dois, Zuleide preferia a ele. Sim, ela o amava. E dava até gosto morrer por uma mulher como ela. A sua Zuleide – pobre Zuleide que Severino menosprezara meses a fio, ao se exibir diante de toda a vizinhança com a tal de Rosinha, aquela sem-vergonha gostosa E se fosse só a Rô, mas tinha também a Malu .
Enfim, quem era ele para julgar o amigo. Nem era mais seu amigo. Cada um sabe de si. Não era certo Severino humilhar Zuleide, assim como também não era certo ela ter mudado pro barraco dele assim que o outro fora preso. Severino soubera de imediato e já mandara recado de morte. Nélson até achou graça no começo. Era dele que Zuleide gostava, não do amigo safado. Além de safado, atrás das grades, o que era bem melhor. Mas essa vida desgraçada, só prega peças. Pegaram o Nélson e não foi por ter apagado Fábio. Pegaram por ter se envolvido numa briga boba de bar, durante a qual sobrou pro dono da espelunca. A polícia chegou, revistou todo mundo, antes que Nélson conseguisse se livrar dos papelotes. Aí, foi aquela merda. Foram parar na delegacia. Algum desgraçado o reconheceu e pronto. Como a delegacia já estava cheia, mandaram para o xilindró. Só conseguira falar uma vez com Zuleide e foi quando ela lhe disse para não ficar preocupado. Estava recordando tudo aquilo, sabendo que não viria coisa da boa. Agora, não tinha mais escolha.
Na chegada à penitenciária, já no pátio, na hora do passeio, Nélson buscou entre centenas de olhares desconhecidos, aquele que lhe era familiar. E, quando o encontrou, e tão próximo e tão igualmente ansioso como o dele, a poucos metros de onde estava, sentiu toda a tranqüilidade ir embora. Diante daquele que fora seu velho amigo e futuro algoz, teve medo. Não, ainda não estava preparado para morrer. Morrer? Ora, o outro que se danasse. Breve, depois das revelações da antiga companheira, iriam transferi-lo. Era só ficar esperto.
Severino se aproximou dele. Sabia o que iria ouvir.
– Ora, ora, meu grande amigo Nerção. Ficou com saudades de mim, é? Pois eu te digo. Fique de olho bem aberto. No refeitório, durante o passeio, no chuveiro, na hora de dormir, quando menos esperar, vai ter o que merece. Pode escrever.
– Severino, sempre fui legal com você – Nélson sentiu sua voz tremer um pouco. Outros estavam chegando, formando uma roda.– Zuleide não gosta mais de você. Ela não quis mais ser capacho...
– Fique de olho aberto, só tenho isso para dizer. Você não vai durar aqui. Sabe disso. Vai ter o que merece.
– Tá certo. Pensa que vai me meter medo. Pois tá enganado. Mulher de amigo é homem para mim. Mas para você ela não era mulher, era um brinquedo. Ela é minha agora.– Ficaram se encarando, punhos cerrados, até que o Cido, um grandalhão que estava lá por ter matado um policial, pegou o Severino pela cintura e cochichou-lhe alguma coisa. Severino fez que sim e murmurou:
– Fique... esperto,meu.
Começa que Nélson não era de ter medo. Cuidadoso ele sempre fora. Era só não bobear. O outro não iria partir para briga, pois, se o fizesse, franzino como era, iria se dar muito mal. Os dias foram passando. Nélson já vinha perdendo o medo. Quando cruzava com Severino, cada um fazia de conta que não estava nem aí, sem perder o outro de vista. Chegou o domingo.
Dia de visita. Nélson esperou que Zuleide fosse encontrá-lo. Até pensou tê-la avistado, mas, pelo jeito, enganara-se. Recebeu a visita da irmã. Até tentou saber notícias, só que a irmã ficou tagarelando, mas nada falou da companheira. Ficou na mesma.
No dia seguinte, durante o passeio, Severino se aproximou dele.
– Nerção, véio de guerra, vamos fazer as pazes. É bobagem a gente que sempre andamos unidos, virar inimigo assim, por um rabo-de-saia. Né?
– Também acho. Se você quiser, taí, eu topo.
– Vamos apertar as mãos, companheiro.
Que coisa estranha. Muito estranha mesmo.
– Sabe, a Zu esteve ontem aqui. Ela esteve comigo.
Aquilo doeu. Doeu mais que o golpe de faca que o deixou caído de joelhos. Levou as mãos à barriga, tentando desesperadamente estancar o sangue. A voz do outro chegava bem fraquinha aos seus ouvidos. Foi até melhor nem tê-lo ouvido dizer:
– Foi ela que me trouxe a faca.


Alexandru Solomon,  formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, é autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar` e  o recente livro/peça ´Um Triângulo de Bermudas`.  (Ed. Totalidade). Confira nas livrarias Cultura (www.livrariacultura.com.br), Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Laselva (www.laselva.com.br) e Siciliano (www.siciliano.com.br).| E-mail do autor: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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