Chegou perto dos filhos, que gritavam por todos os motivos que uma criança grita e fez desdém. Guardou as compras, bebeu uma água bem gelada, a ponto de parecer cortar o cérebro e, enfim, tirou os sapatos.
O dia estava terminando, já começava a escurecer. O barulho da televisão começava a incomodar, mais que os gritos das crianças. Deixou todos por lá e se trancou no banheiro. Tirou lentamente cada peça de roupa, como se todas elas fossem um estorvo. Fitou o azulejo com melancolia e assim ficou por uma eternidade. Bateram na porta do banheiro. Não importa. Não dava para ela ouvir mais nada, a não ser o silêncio contagiante de seus olhos mirando os azulejos velhos. Buscava, talvez, seus sonhos perdidos, ou a mocidade que ela nunca teve. Buscava a si mesmo, talvez.
Talvez era a palavra que ela mais usava para se expressar. Ela era o próprio talvez. Defronte ao espelho pequeno e opaco do banheiro, buscou sua identidade, se é que poderia ter uma. Estava imóvel diante do fardo que pairava na imagem.
Dirigiu-se ao chuveiro, abriu lentamente para deixar a água se espalhar. Estava muito quente, tanto que deixava o seu corpo vermelho. Ela suava debaixo do chuveiro quente. Sua coluna era curvada e suas mãos pendentes. Os cabelos sem brilho, sem corte, sem cor. Deixou a água cair até o corpo se anestesiar. Sua mente também. A porta não parava de bater.
Saiu do chuveiro, se secou lentamente, vestiu um vestido velho. Duas crianças entraram correndo porta adentro. Foi até a cozinha, bebeu um copo cheio de água geladíssima, que contrastava abruptamente com o seu banho quente. Não sentiu nada. Ainda estava anestesiada.
Com os olhos marejados, foi para o pomar. Tinha quatro árvores carregadas de frutas. As mangas caíram quase todas e apodreciam no meio do mato. Ela pegou uma dessas mangas e sentiu quase uma cumplicidade. Sentia-se podre no meio do mundo. Apodrecendo sem ninguém para reparar nisso. Uma fruta tão suculenta, madura, saborosa e apodrecendo sem ninguém para aproveitar toda sua beleza que Deus deu. Uma fruta não pode caminhar até alguém para ser devorada. Ela apenas cai e permanece à mercê do tempo. Mas é injusto dizer que ela se perde. Há larvas se alimentando delas, bactérias, formigas, pequenos insetos. Então, chegou a conclusão, nada se perde, sempre tem algo ou alguém para aproveitar essa fruta. Mesmo que sejam os seres que temos nojo.
Isso lhe deu vida. Esse pensamento lhe deu força. Pegou uma manga no pé e a comeu. Nunca tinha comido uma fruta tão gostosa. Lambeu os dedos, lavou o resto de manga que sobrou nas mãos e no rosto, foi para o quarto e colocou um vestido novo. Ela tinha ganhado de aniversário de sua irmã. Achou que nunca teria ocasião para usa-lo. Mas agora era a hora. Ele era florido, vistoso, elegante. Combinava com uma sandália que tentou guardar para não gastar. Estava se sentindo linda. Passou um batom nos lábios carnudos e ressecados, escovou os cabelos e os deixou com um brilho que não tinha. Escolheu um brinco comprido, uma pulseira que combinava com o colorido da estampa do vestido e respirou fundo. Sorriu. Nunca tinha sentido a brisa do mar estando tão longe dele. Mas por esse instante, se sentiu livre e abriu os braços para abarcar o mundo.
Escreveu um bilhete rápido e colocou num envelope roto. Colou com o cuspe. Pegou as crianças, como estavam, e bateu na porta da vizinha solteirona. Pediu que cuidasse deles para ela. Deu um beijo amado em cada e dedicou tudo o que tinha de mais maternal àquele momento. Ficou em silêncio, admirando a cria. O menor, de dois anos, começou a chorar querendo colo. Ela o beijou, abraçou e ele sossegou. Parece ter entendido. Os outros dois apenas se reservaram o olhar de espanto, mas correram para o quintal da casa, que tinha seus atrativos. Então ela agradeceu e fechou a porta da vizinha. Fechou a sua porta de casa. Caminhou pela rua e foi até o final dela. Depois não se avistava mais a mulher, apenas permanecia o seu perfume.
Ao chegar em casa, o marido não encontrou ninguém, apenas um bilhete dentro de um envelope roto.
“Descobri o amor numa manga caída e vou lutar por ele. Cuide das crianças.”
Alessandra Pereira é jornalista, com pós graduação em marketing e poetiza. Escreve roteiros, crônicas e romances e tem três livros de poesias publicados, além de dois livros de crônicas. Atualmente, também é produtora da Prato Cheio Produções no ramo de música, teatro e cinema