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Depois de ter suas filhas, escrever livros para o deleite alheio, Raymundo Netto plantou uma árvore que, como em sonho, se transformou num imenso benjamim...
Registro Histórico do balão "Brasil" (1907) colorido por Carlus Campus.
Todo mundo — inclusive vocês, confessem. — já ouviu dizer: "para a vida ser plena, tem de se fazer um filho, escrever um livro e plantar uma árvore". É o que dizem por aí, há muito tempo. Eu que sempre fui tentado a discordar, pus à prova: primeiro, da única gravidez, tornei-me pai de minhas duas primeiras filhas, Luana e Liana, que, "para piorar", são lindas (e estão fazendo aniversário este mês); depois, numa crise de sandice, que se tornaria literariamente crônica, escrevi um livro. Como não distingo bem os gêneros, — refiro-me aos literários —, escrevi um romance em tom de crônica e com nome de conto. Porém, faltava-me plantar a tal árvore para alcançar a vulgarmente propalada e desejada "plenitude da vida". Digo bem: Faltava!
Numa manhã de abril, acordei decidido a concluir essa trilogia e, no quintalzinho da casa onde moro, plantei uma pequena árvore, quase um arbusto, que trouxe ainda nos ombros. Renovei e preparei a terra, juntei toda aquela gororoba de uréia, húmus, adubos orgânicos e finquei a plantinha ao lado da lavanderia. Pronto!
No outro dia de manhã, acreditem se quiserem, fui surpreendido por uma imensa lufada de vento frio no quarto. As janelas se debatiam como loucas. Aturdido, corri para trancá-las embaraçando-me às cortinas esvoaçantes... e não consegui. Meus amigos, não imaginam o pasmo que tive quando me dei conta, ao rés do parapeito, da altura fabulosa em que estava suspensa a nossa humilde casinha. E sabem a que se devia isto? À simples escolha errada de árvore. Como poderia saber que aquela inofensiva plantinha, quase um arbusto, eu disse, se transformaria num benjamim gigante?
Para estudar com calma a situação, peguei uma caneca de café bem quente e sentei-me à varanda enlevando os pés numa nuvem gentil. A temperatura estava muito baixa e a fumacinha do café dobrava-se em cristais com carinhas sorridentes. Lógico que isso não era engraçado!
De longe, vi passar um homem de capacete, envolvido em papel alumínio e suspenso por um monte de balões coloridos. Perguntava, aos berros, se eu tinha carregador de celular. Só podia ser delírio ou propaganda dessas operadoras telefônicas. Imagine... Nem liguei.
Depois, não menos estranho, assisti surgir, turvo e enevoado, o balão de cor amarelo-queimado, uma espécie de "laranja gigante", que por um momento me fez pensar se tinha errado a dose do café. Se é que era apenas café!... Mas, logo, logo, percebi-lhe escrito na seda: "Brasil". Abaixo dele, surgiam cordas sustentando a barquinha de vime rodeada de sacos de areia. Um caboclo corpulento acenava-me com simpatia. Estacionou no mezanino, desceu para cumprimentar-me colocando o quepe no braço e, sem cerimônias, sentou-se. Sedento, abriu uma torneira daquela nuvenzinha, — ainda bem que era época de muita chuva —, e bebeu-lhe um pouco d'água fresca, antes de solfejar algumas notas da clarineta que trazia no bolso.
Seu nome era José Pereira da Luz, ou capitão Zé da Luz, como preferia. Pernambucano, foi retirante. Como soldado participou da Guerra de Canudos, mas o que queria mesmo, desde menino, quando viu uma chuva de estrelas no céu do sertão, era fabricar o seu próprio balão e voar bem lá no alto! E assim o fez; e não foi só um, mas todos se incendiaram. Construiu também um pára-quedas "de algodãozinho" que, justo na hora, não abriu, quebrando-lhe a perna. Mas ele não desistiu, não. O cabra continuou! Daí, comprou em Paris um aeróstato, um nome pomposo para... balão!
Vocês não lembram, mas aqui em Fortaleza, quando o balão "Brasil" veio na passagem do ano de 1907, foi um alvoroço... Partiu da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção e ergueu-se sublime a balançar ao sabor dos ventos bravios. Pena que, numa segunda vez, o "Brasil", sabe-se lá por que, tropicou nos telhados próximos ao Passeio Público e esparramou-se, como batatas, pelo chão:
— Visse, Raymundo, que enquanto eu estava internado na Santa Casa, uma senhora muito humilde veio perguntar-me se, quando eu pairava no céu, tinha encontrado algum dos anjos do Senhor? E o mais engraçado era a molecagem do povo que me dizia: "Já vi pereira dar pêra, mas pereira 'dá' luz..." Cearense é bicho gozador!
Após o bom conversado, para não perder o costume, pedi-lhe carona para descer. Como estando a bordo de "Brasis" sempre é bom se prevenir, trouxe um aparelho de GPS (Sistema de Posicionamento Global) com manual anexo, é claro.
No que sucedeu depois, não irei me deter, por absoluta falta de espaço, e pela leve desconfiança de que posso não estar agradando, contudo, afirmo que a antiga máxima da plenitude da vida (filho – livro - árvore) é uma grande besteira, e eu sou testemunha disso. O céu, heróicos leitores, só é o limite para quem não aprendeu a enxergar acima dele.
José Pereira da Luz (pai do poeta Pierre Luz) sempre teve vocação musical. Um dia, porém, ao ler o Dicionário Enciclopédico Português, na letra B, ressurgiu-lhe o desejo de voar que trazia desde criança. Realizou vôos em Recife, Ceará (1.01.1907) e na Bahia. No Rio de Janeiro não alcançou êxito. Em janeiro de 2008, o último vôo do "Brasil" completou CEM anos SEM lembrança e SEM memória.
Raymundo Netto, autor de Um Conto no Passado – cadeiras na calçada, um lunático amador que sofre de perda de memória recente. Contatos: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.