A CRÔNICA DO ALEXANDRU SOLOMON

“Sic Transit Gloria...”

Havia sido um parto normal. A família comemorou condignamente a chegada do herdeiro. O nome a ser gravado na lápide que iria ornar a última morada merecera escolha cuidadosa, de forma a não ferir cânones numerológicos.
Em torno do berço, ocorreu o desfile obrigatório de parentes e amigos dos pais, prontos a retirar o oxigê¬nio do recém-nascido ou, na pior das hipóteses, a inundá-lo de germes diversos. Em volta do futuro gênio, pois ninguém duvidava tratar-se de um lumi¬nar da civilização, transitou em incansável peregrina¬ção à fauna de dedicados subordinados do pai e à flora de inefáveis amigas da mãe.

Como conseqüência, passaram por perto legiões de bacilos, neutralizados pela excelente tropa de choque de anticorpos advindos do leite materno. Consta ter havido mobilização de fadas, das quais se esperavam presentes maravilhosos.
Sucedeu que duas fadas importantes, mais uma assessora e uma fada trainee não conseguiram passar pelo detector de metais. Uma fada retardatária, por desconhecer a senha de acesso ao quarto de Godru¬lino, ficou impedida de presenteá-lo, como era a sua intenção.
Como resultado desta preterição, houve um certo descontentamento, que acabou levando a trainee a abandonar a carreira de fada, optando pela de cobra¬dora de ônibus municipal. Houve, assim mesmo, a imediata cobrança do atendimento domiciliar e, ape¬sar de nada ter sido pactuado, mesmo porque visita de fada não tinha mais preços tabelados, chegou-se a uma indenização que satisfez gregos e troianos. A única descontente foi uma fada de formação pragmá¬tica, que, talvez por ser de origem búlgara, por não dominar o idioma português e por não ter trazido a fada intérprete – sim o nome da fada interprete era Glossária – afastou-se contrariada e contraiu direta¬mente bodas de prata com um fado.
Sabendo que nem tudo que reluz é ouro, os pres¬timosos genitores procederam a uma avaliação meti¬culosa dos presentes, constatando haverem sido recebidas cinco moedas falsas, uma garrafa de pinga com a data de validade vencida e um ingresso para um desfile de moda de esquimós. Tirando esses itens de difícil aproveitamento, os demais presentes foram guardados e cobertos por uma apólice de seguro con¬tra inundação.
Seria um exercício enfadonho, tentar retratar os feitos do Godrulino, mesmo porque ele ainda está em vida, preparando uma edição das suas obras póstu¬mas.
É importante, contudo, lembrar que ainda nas fraldas, deu ele provas insofismáveis de inteligência, respeitando a tradição de bebês prodígio virem a ser adultos estultos. Sabia conservar como poucos um notável sangue-frio, e mesmo correndo riscos, apon¬tava, através de gritos guturais, todas as tentativas da babá de surrupiar o colchão ortopédico dos pais. Este misto de perspicácia e facilidade de comunicação causou espanto nos vizinhos, a ponto de alguns ten¬tarem, sem sucesso, diga-se de passagem, apropriar-se de objetos caseiros tais como: chaminé, estantes ou até do venerável fogão, sendo de pronto desmasca¬rados nesse propósito. Estranhamente, sem ninguém ter-lhe ensinado, o bebê começou a falar latim aos dois anos de idade, pulverizando o conceito de língua morta. Foi neste momento crucial para a educação, que a mãe adquiriu numa floricultura a “última flor do Lácio”.
– “Inculta e bela”, exclamou Godrulino, sem tirar os olhos da genitora. Pensando que o elogio lhe fosse endereçado, e ciente da sua falta de cultura, a jovem mãe foi correndo a um vizinho psicanalista. Este detectou imediatamente a manifestação do complexo de Édipo, e mandou substituí-lo por um complexo vitamínico, mais adequado para o crescimento do nosso herói. A palavra-chave na educação foi sempre “chave”. Por ser marcado por essa palavra, foi neces¬sário trocar a totalidade das fechaduras do lar, pois o menino abria todas as portas usando palavras. Consta que uma das proezas foi ter aberto a porta do cofre da família, pronunciando as doravante famosas palavras:
– Abre-te, Sésamo.
Desta vez os costumeiros elogios deram lugar a uma profunda melancolia no seio da família, pelo simples motivo de o pequeno prodígio ter realizado o feito justo no momento em que a residência estava sendo assaltada. O pai já havia convencido os ladrões a se contentarem com um ferro de passar roupa, quando as infelizes palavras reabriram o cofre e o apetite pelo saque.
– Sic transit a grana papi, teria sido o comentário amuado da criança.
O senso de humor do pai não esteve à altura da inteligência do filho, tanto que, apesar das lamenta¬ções maternas, o menino foi entregue a um mascate em troca de duas maçãs e um canivete.
Foi um sinal de outra galáxia, que dizia claramente ao Godrulino: In hoc signo sifu. Era o início de uma interminável seqüência de peripécias, que haveria de marcar a sua infância e parte da adolescência
Inegavelmente esta guinada tinha as impressões digitais de uma das fadas rejeitadas, o que leva a concluir que, mesmo tendo detectores de metais em casa, estes devem ser desativados todas as vezes que estiver agendada a visita de uma fada.
O mascate, que jamais dera ponto sem nó, repas¬sou a criança, obtendo em troca cinco maçãs e dois canivetes. Estava se preparando para saborear a satisfação pela negociação, quando, cercado pelo Exército da Salvação, teve de se render à evidência. Havia se equivocado tragicamente. Poderia ter pedido ao menos ainda um livro de receitas culinárias, tal era o interesse que o Godrulino estava despertando.
E assim, com a frágil idade de dois anos e oito meses, Godrulino passou a ser mascote num bordel da periferia de Nijni Novgorod.
Inimigo declarado das bebidas alcoólicas, teve de se contentar com a alimentação disponível local¬mente, basicamente textos de teoria marxista-leni¬nista. Isto o tornou uma autoridade que, outros fos¬sem os tempos, teria sido consultada continuamente. A queda do muro de Berlim, o ocaso da perestroika, e os efeitos da vodca no novo lar endureceram o cora¬ção do menino, poupando-lhe, no entanto, as coro¬nárias.
Isto fez com que, em pouco tempo, tivesse se tor¬nado num misto de conselheiro e orientador dos fre¬qüentadores do seleto local. As camas transformadas em divãs estavam sempre ocupadas e, após cada ses¬são de terapia de grupo, o menino era levado no colo do freguês mais antigo da casa. Formava-se uma pro¬cissão que dava a volta à casa e, em determinado momento da marcha peripatética, o menino era arre¬messado para o quarto dele, situado no primeiro andar do digno estabelecimento.
Essa maneira inédita de pôr para dormir passou a ser recomendada no caso de residências de menos de quatro andares e avançou em direção à Ásia, tendo sua progressão interrompida pela barreira dos Urais.
Certa feita, uma digna pensionista aproveitou um final de noite sem cliente e convenceu Godrulino, que estava dormindo profundamente, a visitar Moscou. Era o fim de uma infância despreocupada e o início de uma infância cheia de preocupações.
Como se vê, nem todas as histórias possuem um final feliz.

*Alexandru Solomon é escritor, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas. Tem seu recente romance´Não basta sonhar` (Ed. Totalidade) disponível nas livrarias Cultura (www.livrariacultura.com.br), Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br) e Laselva (www.laselva.com.br). | E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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