Desde criança, aniversário tinha sido coisa séria. Mais de três décadas
festejando o dos outros, e sendo lembrado. Hoje não. Os filhos fora,
passando as férias no sítio da avó, cônjuge tentando se livrar das
misérias domésticas, vitima da bagunça na qual o pequeno apartamento
havia se transformado. Ou, tal¬vez, vítima de um indesejável ataque de
amnésia. Indiferença, era isso. Muito pior que o ódio, simples¬mente a
substituição daquele grande amor pelo misto de um, agora indisfarçável,
tédio com a monotonia dos abraços de intensidade declinante.
Em volta, casais de amigos mantidos pelo Super¬bonder do comodismo. Então, estava tudo explicado: até que o tédio nos separe.
Olhou, questão de hábito, para o cachorro, velho companheiro e testemunha de momentos mais felizes.
Claro, ele veio abanando o rabo diplomaticamente, à espera da tigela de
ração, pela qual, miserável qua¬drúpede, estava negociando este
aparente interesse. Só lhe restava imitar o bicho: devorar a sua ração,
dar um tchau sonoro e sair. Antes, arrumar ainda um pretexto para
demorar, afinal este Parabéns poderia vir, e diante da constatação da
inutilidade da espera, sair a caminho do mesmo escritório no qual, nos
últi¬mos quinze anos, havia trocado seu talento pela pos¬sibilidade de
tirar uma vez por ano umas férias cha¬tas. Este ano iria ser, agora
tinha certeza a repetição desbotada daquilo que a sogra chamaria, ó
coisa abominável, de “mais uma lua de mel, pombinhos ” Nada como a
perspectiva de enfrentar por algumas horas, que ultimamente teimavam em
se arrastar penosamente, o mau humor de um patrão, cuja con¬versa
limitava-se a uma recapitulação metódica de todos os erros cometidos,
com a deliberada omissão dos acertos que haviam marcado a infame
subser¬viência. Se chegasse cedo, era a tentativa de agradar, se
chegasse tarde, era a clara demonstração de que jamais vestira a
camisa, e se chegasse na hora, ouvi¬ria que afinal ter ganho um relógio
por completar 10 anos de casa, havia sido um investimento com retorno,
diferentemente daqueles, que teriam levado o grande chefe à ruína, não
fossem os vetos providen¬ciais deste último a diversas aventuras
insensatas, recomendadas por esse braço direito incapaz. Braço direito
tão desastrado, que obrigara o patrão a se tor¬nar canhoto, para que a
firma pudesse sobreviver. Teve de ouvir essa gracinha com variações
sobre o mesmo tema.
Ao sair, a tortura se repetia. Se saísse mais cedo, era a prova
inconteste de que a camisa da empresa havia sido extraviada. Se saísse
após o término do expediente, era a clara demonstração de falta total
de gerência do tempo, ao passo que a saída na hora era a evidência de
que deveria ter sido funcionário público. O pior de tudo, ou talvez o
melhor, era a inveja dos amigos pela oportunidade de trabalhar junto a
um dos deuses do Mercado.
Deus pérfido este, que sempre elogiava a equipe na frente dos clientes,
mas jamais poupara sarcasmos “incentivadores” nas reuniões relâmpago,
convocadas com a antecedência padrão de dez minutos.
Sacudiu a cabeça. Estava ficando doido, e estava exagerando. Só faltava
pregar uma versão modificada da inscrição da porta do inferno. Melhor
ainda, duas placas. Na sua casa, colocaria “Deixe todas as espe¬ranças
ao sair” e na entrada do escritório, daria um jeito para pregar: “Deixe
todas as esperanças ao entrar”.
Comemorar o último aniversário da casa dos “inta”, quando tudo conspirava para tornar esta data insu¬portável, era demais.
O dia passou, marcado por telefonemas neutros. Sempre aquelas perguntas
estúpidas: o que está acontecendo com o mercado, para as quais havia
res¬postas já repertoriadas.
Em época de alta, devemos ser prudentes, embol¬sar eventuais ganhos (de
vez em quando aludir à “exuberância irracional”) em épocas de baixa,
esta¬mos diante de uma turbulência que nada significa para os
investidores de longo prazo, e nas épocas de calmaria o mercado está
retomando fôlego, estamos atentos para o leque de oportunidades,
prestes a se oferecer...
Não podia faltar um pedido de análise vindo do patrão, com a gentil
recomendação: “Surpreenda-me desta vez com um acerto”. A tela do micro
enviando-lhe informações sem cessar, o corre-corre subalterno, as
risadas dos colegas, moldura perfeita para a pró¬pria desilusão.
Ninguém havia se lembrado do aniver¬sário. Ilustração irretocável da
sua insignificância.
Última volta do ponteiro dos segundos, como dizia aquele radialista.
Bons tempos aqueles! Andar de calça curta e sem relógio digital para
invalidar o refrão do locutor. As gavetas engolindo toda a pape¬lada,
deixando a mesa desolada e vazia.
Nenhuma vontade de chegar cedo em casa. Uma vez na avenida, tragado
pelo turbilhão humano, deci¬diu. Vamos ver se essas mágoas sabem nadar
e diri¬giu-se ao bar, duas quadras mais adiante, famoso pelo “happy
hour.” Nada mais adequado do que uma hora feliz para embotar a mente.
Na meia escuridão, ou meia claridade, vislumbrou as mesas tomadas por
pares compenetrados, ou alguns grupos, que, ruidosamente, demonstravam
estar algumas rodadas à sua frente.
Pediu “o de sempre” para um garçom desconhecido e, saboreando
cruelmente a indecisão do pobre diabo, completou: “Talvez seja
necessário que o maître o ajude, ou não?”.
Depois de alguns momentos de silêncio da vítima, sentiu-se envergonhado
pela brincadeira idiota, e pediu um Bedoze sem gelo. Disse para o
garçom que o havia confundindo com outro e que não era para se
preocupar. Afinal, ter o aniversário esquecido pelo mundo não era uma
tragédia.
Dose após dose, o ambiente estava se tornando mais agradável. O espelho
à sua direita lhe devolvia uma imagem bastante reconfortante. A
natureza tal¬vez não havia se esmerado em demasia, mas tam¬pouco havia
sido ingrata. Esta constatação precisou de uma comemoração adicional. O
garçom ia e vinha, sem comentar nada, com receio de levar algum coice
ou por perceber que deveria respeitar-lhe o isola¬mento.
Silenciosamente, transferia o conteúdo da garrafa para um estômago em
chamas e um cérebro que transformava todas as imagens num
incontrolá¬vel carrossel. Levantar foi fácil, mas aquela colocação
desordenada das mesas e o piso cheio de ondulações traiçoeiras tornavam
muito difícil alcançar a saída. Era um laribinto, não, um birinto,
la-bi-rin-to soluçou para um porteiro cheio de compreensão e de bom
senso que chamou um táxi.
O endereço, sim, o endereço, aquele sujeito não conhecia o endereço,
taxista incompetente. Merecia uma pista, o nome da rua e o logaritmo do
número do prédio, onde estava a HP??
Esse táxi parecia navegar, não? Não, estava sur¬fando, a caminho do
lar, “eu vou eu vou para casa agora eu vou”... como cantava bem! Nunca
ninguém lhe havia dito isto, mas agora ia sair do anonimato para o
estrelato, se o remador parasse de sacudir a embarcação... Um acobrata,
arcobata... acroba-ta decidiu, finalmente.
Elevador amigo, um pouco deslocado do lugar habitual, mas fácil de
achar, a apalpação do painel gelado, o botão do andar. Sem fechar a
porta, não voa, que coisa estúpida!
O andar e a ida de patim colidindo com a porta. A chave, chave
traiçoeira, escondida, achada, mas a porta não tinha fechadura... o
jeito era bater, forte, mais forte... Abriu... Este mundo todo...
batendo pal¬mas... cantando parabéns, gente querendo beijar, beijar a
ruína ambulante na qual se transformara.
Restou cair sentado no chão e chorar, chorar...
Alexandru Solomon é autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos
Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`,
´Desespero Provisório` e o recente romance´Não basta sonhar` (Ed.
Totalidade). Confira nas livrarias Cultura
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