Crônicas sem respostas

Abril, mês em que celebramos o natalício de nossa Fortaleza. Para mim, outro motivo de reflexão: um ano de crônicas publicadas às segundas-feiras em O POVO.

www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/780761.html

 

A cidade não vai bem, obrigado de nada, e por isso, durante o ano inteiro, apresentei na ribalta de papel, alguns dos cronistas cearenses mais experientes no fortalezeado, crendo que, através deles, poderia girar a manivela da memória de nossos urbanitas. Hoje, depois de tudo, me pergunto: será que valeu mesmo a pena escrever? E escrever para quem? São tantas crônicas sem respostas... Estava triste, muito triste, só em minha "ilha", quando o carteiro, acenando uma carta, gritou-me o ofício. Recebendo-a, sentei-me à calçada e coloquei o envelope à contraluz antes de rasgar-lhe uma tirinha lateral. De seu interior, tirei uma folha de papel dobrada com finas pautas preenchidas à caneta. O remetente era o Milton Dias. Tempos há, não escrevia:

"Raymundo, amigo, saudações. Faz tempo que sabemos da existência um do outro, mas nunca fomos apresentados, embora o deseje muito. Penso que bom mesmo de escrever é carta: tem-se a certeza de um leitor e a possibilidade de uma resposta, não é?

Eu, você bem sabe, escrevi neste mesmo jornal. Foram vinte e seis anos de boa conversa de terraço, sem rebuscados nem preciosismos, denunciando a minha origem sertaneja. Veja lá que um dia, no tempo de menino, quiseram me curar da ignorância congênita, colocando-me um livro nas mãos, e me deram o mundo de presente. Contudo, depois de uma 'papeira', contraí o vício, incurável, do papel de jornal. Não tenha dúvida de que muitas dessas minhas 'conversas' com o leitor nasceram entre a boca da noite e a madrugada. E daí, por mais que tentemos evitar, colega, nos projetamos no que escrevemos e acabamos por nos contar, confessar nossos sentimentos, soltando os pedaços desta alma envelhecente."

Ao sentir um inesperado aroma de café torrado em casa, escorreguei, devagar, os olhos do papel. Misteriosamente, percebi-me numa sala pequena, sem janelas, a não ser para a rua, onde um grilo cantava soluçante.

No corredor e na sala, enfileiravam-se gaiolas de arames com graúnas, golinhas, sabiás, papa-capins e periquitos australianos azuis. Mona, a gatinha, ronronava sobre um birô. Debaixo dele, Dique, um cãozinho preto de patas brancas, contava histórias de seu Pedro, o farmacêutico. À cozinha, um poleiro papagaiava vazio.

Não avistando ninguém, abri a meia porta e entrei em um dos quartos. Do toca-discos pude ouvir Piaf cantar, como em Paris, "Non, je ne regrette rien". Próximo à cama, o par de chinelos velhos. Sobre a colcha vermelha, um pijama; a rede de corda pendurada no armador. Noutra parede, o retrato de um senhor careca de óculos quadrados. Encostado ao guarda-roupa, uma mala — cheia de cartões postais da cidade — forrada com papel brilhante colorido de ramagens e cantoneiras de metal. Na mesa de gasto verniz, bloco de papel de carta, caneta tinteiro, envelopes, um livro de Gil Braz de Santilhana, a revista francesa Ars, o soneto Tristesse em folhas mimeografadas, a pequena agenda de capa vermelha, uma caderneta preta de endereços, uma foto — escrito no verso, "dois patetas em Minas" —, comprimidos de Paludinas num almofariz branco e, no porta-retrato, ladeado pela imagem de Santo Antônio, a fotografia de uma mulher sorria sob a declaração de afeto: "Donzela* estrela, flor, fada, irmã."

Voltei para sala e corri à janela onde avistei, logo à frente, a praça da Escola Normal rodeada por oitizeiros que acolhiam ninhos de fogo-pagou. Um verde Volks 63 descansava à rua pequena onde cães ladravam em ruidosa assembléia. Do corredor estreito veio uma lufada de vento de quintal, e nele pude ouvir a voz missivista do Milton a desatar memórias afetivas:

"Partir é bom, ficar é triste, voltar é uma beleza. Ah, como é bom voltar à Fortaleza de encantamentos, querenças e quenturas. Vou e volto porque aqui é a minha casa, minha rua, minha praça e minha gente. Sinto uma ternura que deita na alma e me enche de melancolia. Que saudades do Alagadiço; da praça Coração de Jesus nos tempos do ginásio Cearense; das pipocas, doces gelados e o puxa-puxa da Cidade da Criança; da praça da Lagoinha e sua fonte de mulheres seminuas; do verde mar de Iracema (que nem minha mãe) que me acolheu (como minha mãe); das conversas na praça do Ferreira; de ouvir o cantar dos galos nos quintais, à madrugada, no beco dos Pocinhos; da praia do farol do Mucuripe aos domingos; do assobio dos ventos nas folhas das carnaubeiras; do Baile do Rubi no Clube do Diários; dos biscoitos de champanhe com guaraná na Nice e Crystal; das vesperais do cine Moderno; das tardes de cadeiras na calçada sem televisão; dos amigos fumando Odalisca e bebendo cerveja no Passeio Público; dos bondes gemendo em cima dos trilhos; do sol se afogando no mar à Ponte Metálica; das conversas de cunhãs, das plantas, da música, dos pássaros e das crianças.

Ora, Raymundo, todos cantam a sua terra, também somos filhos de Deus, ah, que também cantemos a nossa! Afinal, tudo passa, passa mesmo. Esta cidade que estão cobrindo de asfalto e plantando arranha-céus ainda é a nossa cidade. Não há motivos para comemorar, eu bem sei, e como sei, principalmente se os 'detalhes tão pequenos de nós dois' estão sendo deixados de lado, mas aconselho: melhor será tocar para frente, olhando menos o passado, curtindo muito o presente e preocupando-nos só um pouco com o futuro. A certeza do irrecuperável dói muito. Aliás, tudo dói, quando vira saudade."

— Sim, Milton, porém nesse ponto sou como você: não faço questão de ganhar, mas faço questão de não perder! — pensei, diante das paredes mudas.

Juntando tudo no pensamento, e em busca de ar, saí para a calçada. Contudo, lá de fora, a casa do Milton não parecia mais a mesma. A fachada, coberta de granito escuro e vitrais, ostentava uma placa: "escritório de advocacia". Tentei entrar novamente, quando uma recepcionista me atendeu. Não havia mais nada lá. Nada. Procurei nos bolsos, a carta. Li:

P.S.: Por fim, escrevo esta carta, amigo, para falar de mim (mas leia-se de você), que ainda estou por saber se sou um homem, uma crônica ou um conto. Ouça: continue, escreva. Enquanto o quiserem ou mesmo por, devido à correria das redações, esquecerem de dispensar-lhe este fardo, escreva! Há muito que se aprender ainda no grande livro do mundo.

Um dia qualquer, desde que seja 17 de abril de 2008.

Do amigo M. D."

Chovia na cidade e, ali, a torre da igreja Pequeno Grande apontava aos céus, acenando o lenço branco da saudade e abençoando "a bendita solidão dos que sabem ser sós". Tudo passa, passa mesmo. Que Deus a proteja de nós, Fortaleza.


(*) apelido da amiga Alba Frota.

Milton Dias (1919-1983) nasceu na Rua da Goela no Ipu, Ceará. Bacharel em Direito e em Letras era membro da Academia Cearense de Letras. Cronista, por mais de vinte anos, do jornal O POVO é autor de As Cunhãs, A Ilha do Homem-Só, Entre a Boca da Noite e a Madrugada e Cartas sem Resposta. O texto da carta do Milton reúne transcrições e adaptações de suas crônicas.

Raymundo Netto é escritor, apaixonado nem sabe o porquê por esta Fortaleza, e a ela dedicou o romance Um Conto no Passado – cadeiras na calçada e mais algumas horas. Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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