SOBRE HISTORIADORES E ARAPONGAS

O episódio algoz e vítima, que vem provocando uma discussão tensa desde o dia 12, trouxe à tona acontecimentos dolorosos, mas serviu também para aclarar o papel hoje desempenhado pela grande imprensa e por um de seus expoentes mais destacados.  

As máscaras foram arrancadas e os leitores, perplexos, vão se dando conta de que formam opinião a partir de informações distorcidas, altamente manipuladas, enquanto os defensores da verdade não encontram tribuna, não têm verdadeiro direito de resposta nem espaço para apresentar o  outro lado.

Tudo começou quando o jornalista e historiador Elio Gaspari publicou em sua coluna na Folha de S. Paulo, O Globo e outros jornais uma diatribe contra a União (“Em 2008 remunera-se o terrorista de 1968”), por ter decidido pagar ao suposto algoz Diógenes Carvalho de Oliveira uma indenização duas vezes maior do que a outorgada à sua suposta vítima Orlando Lovecchio Filho.  

Como o primeiro era um militante da Resistência à ditadura e o segundo, o cidadão que perdera a perna no atentado supostamente por ele cometido, o assunto logo transbordou do circuito habitual do Gaspari para outros jornais, revistas semanais, sites de extrema-direita e correntes de e-mails neo-integralistas. 

Desde então, as refutações têm sido sempre ignoradas ou relegadas à seção de cartas (cortadas até se tornarem anódinas, publicadas com imenso atraso, etc.), enquanto os espaços nobres servem para repercutir o texto de Gaspari ou trazer-lhe acréscimos, na vã tentativa de respaldar suas afirmações indefensáveis.  

Tanto a Folha quanto Gaspari chegaram a reconhecer que, dos quatro militantes apontados levianamente como autores do atentado ao consulado estadunidense em 1969, Dulce Maia era inocente e havia sido por eles caluniada.  

Mas, nem mesmo o depoimento do único participante ainda vivo desse atentado obteve o merecido destaque, apesar de provocar uma verdadeira reviravolta no caso: Sérgio Ferro, admitiu sua culpa e seus remorsos, mas desmentiu a participação de Diógenes de Carvalho e Dulce Maia, além de esclarecer que se tratou de uma ação da ALN e não (como Gaspari afirmara) da VPR. 

Outra informação importantíssima que a grande imprensa escamoteou de seus leitores: Ferro foi acionado na Justiça por Lovecchio e obteve ganho de causa graças aos relatórios médicos que apresentou como prova. O primeiro dá conta de que o ferimento de Lovecchio era grave, mas existia possibilidade de recuperação. Depois, o socorro a Lovecchio foi interrompido pelo Deops, que quis interrogá-lo, provavelmente para saber se ele era vítima do atentado ou um participante azarado. Quando os policiais afinal o liberaram, sua perna já havia gangrenado e teve de ser amputada (2º relatório).  

Ora, se o algoz não era algoz, então o texto inteiro do Gaspari perdia o  gancho  e desabava, bem como as matérias caudatárias publicadas pela Veja e da Época. O que fizeram os veículos, face à evidência de haverem informado mal seus leitores, além de caluniarem dois cidadãos e acusarem falsamente a VPR? Deram desmentido com o mesmo destaque? Nem remotamente.  

A consciência da vulnerabilidade de sua posição aos olhos dos (poucos) cidadãos bem informados fez Gaspari voltar ao assunto na sua coluna dominical de 25/03. E o fez recorrendo às informações que, desde o início, foram a viga-mestra de suas perorações fantasiosas: os famigerados inquéritos inquéritos policiais-militares da ditadura.  

Como um mero araponga, ele se pôs a revolver o lixo ensanguentado da ditadura, dando grande importância ao fato de que havia congruência entre os depoimentos extorquidos dos torturados e omitindo que os torturadores forçavam todos os presos a coonestarem a  versão oficial, a síntese elaborada pelos serviços de Inteligência das Forças Armadas, para que o resultado final tivesse alguma verossimilhança.  

Se fosse, como pretende, um verdadeiro historiador, saberia que os militantes eram coagidos a admitir os maiores absurdos nas instalações militares e, depois, encaminhados a delegacias civis onde deveriam repetir, sem torturas, as mesmas afirmações. Os que, pelo contrário, desmentiam tudo, eram recambiados aos quartéis e novamente submetidos a sevícias brutais, até se conformarem

em obedecer ao script. 

Destrambelhado, Gaspari ousou até fazer novo ataque a Dulce Maia, a quem pedira humildes desculpas no domingo anterior. Que credibilidade espera ter, agindo com tanta incoerência? 

A última intervenção de Gaspari no debate foi, de longe, a mais desastrosa. Colocou-o ao lado dos torturadores, defendendo o entulho autoritário. Se a inicial arranhou sua imagem de historiador, a derradeira disse muito sobre suas verdadeiras devoções.  

O que, aliás, já se suspeitava: não é qualquer cidadão que desfruta de tal confiança de personagens como Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, a ponto de ser por eles escolhido para repassar ao distinto público suas desculpas esfarrapadas pelo papel histórico que desempenharam, como protagonistas do arbítrio.  

O entulho autoritário - Se esse episódio deplorável serviu de algo, foi para comprovar, definitivamente, que o entulho autoritário deve ficar no lugar a que pertence: a lata de lixo da História. 

Um regime de exceção utilizou práticas hediondas para investigar a ação dos resistentes que a ele se opunham e os inquéritos assim produzidos serviram para condenar patriotas, heróis e mártires em tribunais militares, com oficiais das Forças Armadas fazendo as vezes de jurados, o que atropelava flagrantemente o direito de defesa.  

O quadro era tão kafkiano que, num julgamento em que fui réu, o advogado de ofício designado para um companheiro apresentou-se completamente embriagado e começou sua peroração não falando coisa com coisa. O juiz auditor o expulsou da sala e mandou que outro advogado de ofício improvisasse a defesa, imediatamente, mal tendo tempo para ler os autos. O julgamento prosseguiu. 

A Lei da Anistia de 1979 sustou os efeitos concretos desses julgamentos e as ações seguintes do Estado brasileiro, como a constituição das comissões de Anistia e de Mortos e Desaparecidos Políticos, evidenciaram que os antes tidos como criminosos passaram a ser considerados, oficialmente, vítimas. 

Enfim, os IPMs foram, tão-somente, a versão que um inimigo apresentava do outro, para dar aparência de legalidade ao que não passava de arbitrariedade, sem compromisso nenhum com a verdade e a justiça.  

Qual a credibilidade de um regime que fez afixarem-se em logradouros públicos do País inteiro, em meados de 1969, cartazes me acusando de “terrorista assassino” que teria “roubado e assassinado vários pais de família”, embora eu fosse um dirigente e nunca um homem de ação?  

Mas, para aqueles militares, a verdade não existia em si. Só lhes interessava a verdade operacional, as versões mais adequadas a seus objetivos na guerra psicológica que travavam.   

Passadas quatro décadas, essas versões unilaterais, fantasiosas e espúrias infestam a internet, chegando até a impregnar textos jornalísticos – por má fé dos seus autores ou por preguiça de profissionais que preferem colher subsídios nos sites de busca do que nos arquivos de seus próprios veículos, acabando por comer na mão dos Brilhantes Ustras da vida. 

Então, é mais do que tempo da imprensa se compenetrar que, sem uma sentença lavrada por um tribunal na vigência plena do estado de direito, ninguém pode ser apontado taxativamente nos textos jornalísticos como “terrorista” ou autor de tais ou quais crimes com motivação política.  

Os repórteres, comentaristas, articulistas e editorialistas que agirem de outra forma, estarão coonestando a prática de torturas e os julgamentos realizados por tribunais de exceção. 

E, já que nada do que Gaspari contrapôs pode ser aceito pelos homens decentes que não aceitam mancomunar-se com práticas hediondas, subsiste o fato de que uma versão distorcida e panfletária do episódio teve enorme destaque editorial e, conseqüentemente, ampla repercussão, enquanto as informações que repuseram a verdade dos fatos ficaram, quando muito, jogadas na seção de cartas. 

Que cada um tire suas conclusões acerca dessa praga que cada vez mais se alastra pela imprensa brasileira: a burla do direito de resposta e a tendenciosidade no tratamento editorial, não se expondo convenientemente o  outro lado ou omitindo-o por completo. 

· Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista, escritor e ex-preso político. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/ 



ELIO GASPARI

O terrorista de 1968 remunera-se em 2008

A família do soldado morto no atentado recebe R$ 1.140 mensais, já o rapaz da VPR fatura R$ 1.627

QUARENTA ANOS DEPOIS do atentado a bomba contra o Consulado Americano em São Paulo, Sérgio Ferro, intitulando-se "único sobrevivente" do grupo terrorista que fabricou, transportou e detonou o explosivo, informa:
1) Diógenes Oliveira e Dulce Maia não participaram dessa ação. 2) A ação foi iniciativa da ALN (Ação Libertadora Nacional), e não da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária).
Quem disse que Diógenes, o "Luís", e Dulce de Souza, a "Judith", participaram do atentado, organizado pela VPR, foi o doutor Sérgio Ferro em seu depoimento à polícia em 29 de março de 1971. Na ocasião, Ferro estava preso e a tortura era uma política de Estado para obtenção de confissões, verdadeiras ou falsas. Passados 37 anos, Ferro julgou oportuno corrigir seu testemunho. Em 1969, na prisão, Pedro Lobo de Oliveira e Diógenes, ambos da VPR, revelaram suas participações no atentado. Diógenes admitiu ter fabricado a bomba, com "um ou dois quilos de dinamite".
Quando Ferro incriminou Dulce de Souza Maia, sabia que ela estava a salvo, no exílio. Além disso, uma bomba a mais, uma bomba a menos, não faria muita diferença na carga que a polícia imputava à dupla mencionada por Ferro.
Diógenes e Dulce foram associados a dois retumbantes atentados terroristas. No dia 26 de junho de 1968, a VPR lançou um caminhão-bomba com 15 quilos de dinamite contra o Quartel General do 2º Exército, em São Paulo. Na explosão, morreu o soldado Mário Kozel Filho, de 18 anos. Dulce Maia contou sua participação nesse episódio numa entrevista a Luiz Maklouf Carvalho. Ela foi publicada no livro "Mulheres que foram à luta armada", em 1998. Diógenes nunca falou publicamente sobre o caso. Os documentos conhecidos, que devem ser vistos com reservas, são o depoimento dele e de camaradas seus, todos presos. Diógenes admitiu ter fabricado a bomba. Onofre Pinto, que participou do atentado, disse que Diógenes acendeu o estopim.
Diógenes e Dulce também foram acusados de terem participado do planejamento e do assassinato do capitão americano Charles Chandler, em outubro de 1968. Na mesma entrevista a Maklouf, Dulce narrou sua colaboração no levantamento dos hábitos do capitão. Diógenes nunca discutiu esse atentado em público. Contudo, Pedro Lobo de Oliveira, seu colega de VPR, contou aos organizadores do livro "Esquerda Armada no Brasil", premiado em Cuba em 1973, que eram três as pessoas que estavam no carro do qual partiram os assassinos do capitão: ele, que ficou ao volante, e mais dois, um com um revólver e outro com uma metralhadora. Pedro Lobo não os nomeou. Informou que a dupla só foi identificada quando um militante da VPR que "sabia quais os companheiros que haviam participado" contou o caso à polícia, na prisão. Esse "delator", Hermes Camargo, tornou-se um colaborador do regime. Anos mais tarde ele repetiu o dois nomes numa entrevista a "O Estado de S. Paulo": os atiradores foram Diógenes Oliveira, o "Luís", e Marco Antonio Brás de Carvalho, o "Marquito", morto meses depois do atentado.
Assim como deve-se dosar o crédito às confissões de Sérgio Ferro e deve-se duvidar dos depoimentos de pessoas presas, é necessário registrar que a narrativa de Diógenes, preso, é semelhante à de Pedro Lobo, solto. Diógenes reconheceu ter sido um dos autores dos disparos.
Orlando Lovecchio, que teve a perna esquerda amputada abaixo do joelho por conta da explosão da bomba que Sérgio Ferro e seus camaradas puseram no Consulado Americano, recebe R$ 570 mensais da Viúva. Os pais do soldado Mário Kozel conquistaram em 2003 uma pensão de R$ 330, reajustada no ano seguinte para R$ 1.140 mensais. Desde o dia 24 de janeiro, Diógenes ficou em melhor situação. Ele ganhou uma Bolsa Ditadura de R$ 1.627 mensais (as vítimas, juntas, recebem R$ 1.710), com direito a R$ 400 mil de atrasados. Repetindo: há algo de errado na aritmética das indenizações e numa álgebra que acaba remunerando melhor o terrorista que participou de um atentado do que a família da sentinela assassinada ou o transeunte amputado.

publicidade
publicidade
Crochelandia

Blogs dos Colunistas

-
Ana
Kaye
Rio de Janeiro
-
Andrei
Bastos
Rio de Janeiro - RJ
-
Carolina
Faria
São Paulo - SP
-
Celso
Lungaretti
São Paulo - SP
-
Cristiane
Visentin

Nova Iorque - USA
-
Daniele
Rodrigues

Macaé - RJ
-
Denise
Dalmacchio
Vila Velha - ES
-
Doroty
Dimolitsas
Sena Madureira - AC
-
Eduardo
Ritter

Porto Alegre - RS
.
Elisio
Peixoto

São Caetano do Sul - SP
.
Francisco
Castro

Barueri - SP
.
Jaqueline
Serávia

Rio das Ostras - RJ
.
Jorge
Hori
São Paulo - SP
.
Jorge
Hessen
Brasília - DF
.
José
Milbs
Macaé - RJ
.
Lourdes
Limeira

João Pessoa - PB
.
Luiz Zatar
Tabajara

Niterói - RJ
.
Marcelo
Sguassabia

Campinas - SP
.
Marta
Peres

Minas Gerais
.
Miriam
Zelikowski

São Paulo - SP
.
Monica
Braga

Macaé - RJ
roney
Roney
Moraes

Cachoeiro - ES
roney
Sandra
Almeida

Cacoal - RO
roney
Soninha
Porto

Cruz Alta - RS