O cordel em saudade enluarada

Guabiras

Uma tarde na praça entre livros usados, o escritor encontra o poeta e amigo José de Ribamar Lopes para uma prosa recheada de lembrança dos tempos de outrora.

A Feira do Sebo do mês de janeiro teve como tema a Literatura de Cordel. "Mas por quê"?, ouvi de algumas pessoas a admiração, e eu, cá, me admirando era com elas. 

Ora, bastava ir à praça do Ferreira e descobrir o motivo! E era este, se não outro: os autores dos folhetos, assim como suas obras, estavam espetacularmente pendurados pelos cotovelos, joelhos ou pés, sustentados por pregadores de roupas em pequenos fios parecidos com barbantes de palha. E, mesmo assim, estavam sorridentes, contando as presepadas de um matuto ou outro, arremetendo a mão engarrada na declamação de versos, na contação de causos de onça ou de saudosas pelejas. Se eles não estavam chateados com a posição incomodante? Qual nada! Cordelista sempre dá um jeitinho de "desatar nós". Ainda mais em meio de praça... Estavam, bem dizer, em casa!

De primeiro, adoro a Feira, pois além de levar escritores, pesquisadores e artistas para conversar com o povo, faz feliz aos sebistas e livreiros que desprendem seus livros a preços bem acessíveis (já foram vendidos, em quatro edições, cerca de 10.000 livros). E, repare, ainda tenho a desculpa para passar uma tarde inteira na praça, a minha praça, e encontrar com diversos passantes e amigos.

Desta vez encontrei, ao lado da tenda, todo enfeitado de fitas, um muito querido — haviam me dito,  vejam só que malvadeza, que tinha passado desta para melhor.—, sabem quem? O poeta Ribamar Lopes.

Esse reencontro foi de uma alegria para muito grande demais, ainda mais na Feira dedicada aos cordelistas e cantadores a quem ele tanto se dedicou.

Conheci o Ribamar quando era menino, e nem não faz muito tempo. Ele chegava lá em casa, — minha mãe tinha um consultório dentário. —, sentava na área, cruzando os joelhos, e se punha a ler alguma e qualquer coisa. Encostado à janela, eu o espiava, curioso: sujeito de pequena estatura, esguio, face rosada, olhos bem miúdos, cabelos brancos, ralos e apipocados. Teve uma época em que dava a chegar com um bonezinho, mas creio que não pegou... Eu, menino velho de cabelos negros espetados e sardas decorando a palidez no rosto, tinha mania de escrevinhar poeminhas rimados em pequenas quadras, e sabendo-o poeta, levava-os — desaforo! — para que lesse. E lia mesmo! Lia com modos de gravidade que até pensava ser coisa séria. E era! Dava-me conselhos, sugestões, cozia ali mesmo outros versos, falava de sua coleção de velhos LPs, e se divertia, ria gostosamente da conversa boba e inventiva de um menino que, não sabia, mas naquela envoltura, fugia da feitura do dever de casa...

Assim, lembrei-o de um presente recebido há vinte e três anos passados: o livro "Quinze Casos Contados" que até hoje carrego comigo nas diversas moradas que já tive nesta vida. Na verdade, Ribamar, foi o primeiro livro de contos que li, sabia?

Entortando a boca por sobre o queixo quadrado, tímido, impressionou-se. Ajeitou os óculos, enrugou a testa e vozeirou:

— Eu não gosto de sair à noite, Netto. Tenho saído muito pouco... Acho que o último lançamento em que compareci foi o do seu livro. Meses antes, tinha ido para o da Lucineide Souto, lá no Mercado dos Pinhões, devido à amizade. Venho algumas vezes à praça, converso um pouquinho com o Rouxinol do Rinaré na banca do cordel... Aliás, me parece que acabaram com a banquinha, não foi? Que pena, que pena... Contudo, convém que fique entendida a grandeza da contribuição da poética popular. Veja bem: os seus folhetos, assim como os velhos almanaques comprados em feiras e mercados, letraram muita gente do sertão afora, na época em que era mais difícil o ensino. Divulgaram o talento de diversos xilogravuristas e ainda hoje são os grandes responsáveis pelo legítimo resgate e manutenção da identidade, folclore, tradições populares e regionais. Creio que a poesia de Cordel é um veículo indispensável para se criar o hábito da leitura e ao mesmo tempo fixar as raízes culturais de nossas crianças. Sem dúvida eu posso dizer que o Cordel é o espelho do povo.

Ouvindo atento, após um pigarro, arrisquei como antigamente:

— A peleja é grande, meu amigo, e a vida é tirana, mas o Cordel está de volta à praça, nem que seja por uma semana, através da Feira do Sebo, um evento tão bacana.

O velho Riba gargalhou da versejada de pé quebrado:

— Um dia você consegue... Vai tentando, "pingo-de-leite", vai tentando!

Abracei-o fortemente como quem, talhadas as lembranças, as recolhe no coração. Ele, cansado, disse que partiria com saudade, mas se iria. Sossegado, sorrindo com graça, lançou as pernas ligeiras na Guilherme Rocha (uma rua linda) carregando umas sacolas de compra. Foi-se. Entre as emboladas e cantorias, pus-me a "ouvir" uma valsa. "E a valsa começa a sair da clarineta. A mesma valsa das serenatas, agora soando triste, e não apaixonada."(*)

À distância, por trás do galope do tempo, vi a poeira da eternidade agudar-se no peito: Até "um dia, um dedo, um dado; um dado, um dia, um dedo; um dedo, um dado... um dia!"(**)


(*) trecho de "A Valsa" de Ribamar Lopes.  (**) adaptação para os versos de Firmino Teixeira do Amaral
José de Ribamar Lopes (08 de novembro de 1932 - 24 de  janeiro de  2006)  poeta, folclorista, contista e ensaísta, nasceu em Pedreiras, Maranhão. Premiado autor da antologia Literatura de Cordel, Cordel: mito e utopia (ensaio), Quinze casos Contados (contos), Viola da Saudade (poesia)  e Saudade Enluarada (Poesias - póstumo) e outros.
Raymundo Netto é admirador e amigo do quase (precocemente) esquecido Ribamar Lopes, o "paizão" de muitos cordelistas no Ceará. Afora isso, e de pouca importância, escreveu Um Conto no Passado: cadeiras na calçada,  e é um dos editores do CAOS Portátil – um almanaque de contos. Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. 

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