O MORDOMO REAL*

CONTO SURREAL ESCRITO POR UM ELEITOR OTÁRIO  INSPIRADO EM QUEM SUBTRAI CONTOS REAIS DO ERÁRIO

* Qualquer semelhança com fatos e pessoas reais não será mera coincidência... 

Ele nasceu onde ninguém desejaria nascer – em Karuaru City, zona do agreste, lugar com fama de forjar homens valentes e destemperados.  Logo tomaria o rumo da capital industrial do Reino, como faziam seus pares, buscando oportunidades.  

Desnecessário dizer da penúria em que vivia; porém, havia determinação naquele homem que desejava formar família e quiçá, brilhar de algum modo na multidão de iguais que sonhavam com a profissão de Mordomo Real.  Oriundo de um povoado com tantas desigualdades sociais, ele antevia que nada seria fácil...

Após tantas investidas frustradas, onde o fracasso parecia parte do sonho e ninguém acreditava na vitória - nem mesmo os companheiros radicais forjados no trabalho vigiado dos sindicatos, ele conseguiria emprego no castelo feudal.  Ali, onde Sir e Lady Birmingham, conselheiros do Castelo de Buckingang, súditos da intimidade da Coroa reinavam sem gostar de reinar.  Tanto ele quanto ela, delegariam ao novo mordomo o controle do cotidiano do castelo meio que alvoroçado, por conta da incompetência de serviçais anteriores.

Diante da visão imponente do castelo iluminado, a cena parecia um sonho.  Ele percebia que conviver com algo tão grandioso, no centro de tanto poder, seria tarefa difícil.  Porém, logo empossado no cargo, demonstrava jeito, muita malandragem

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e gênio eloqüente, promovendo sabatinas cansativas com a criadagem mais habituada a ficar quietinha no seu canto fazendo tudo que seu mestre mandar.

No púlpito das reuniões maçantes, Louis Ignation descobria capacidade para o discurso, o dom da prosa e da ironia verbal - para desgosto da criadagem que passara a viver em reboliço e apreensão. As crianças seriam as primeiras vitimas, com destaque para os meninos de cabeça ruiva e cara pintada privados, subitamente, do prazer da gula: nada de tortas de chocolate nem hot dogs; nem um copinho do xarope diluído mundo afora, cuja receita contém o sumo daquelas folhas que os famintos da Cordilheira dos Andes mascam para ludibriar a fome crônica que é comum aos oprimidos que vivem na linha que fica abaixo do Equador.

Logo seria a hora e a vez das camareiras e cavalariços menos refinados, muito hábeis no manejo indevido das finanças de quem paga a ração do Reino, comprada, por motivos óbvios, no câmbio negro.

O castelo passou a ser administrado por medidas provisórias e discursos, muitos discursos. Sempre que alguém acenava com um chapéu, o Mordomo Real, incontinenti, testava-o na própria cabeça para ver se lhe caía bem, exibindo aquela simplicidade filha da mãe, típica dos tiranos que conduzem os miseráveis na rédea curta da demagogia.  Apesar dos cargos distribuídos ao bel-prazer para companheiros e companheiras, das mordomias denunciadas na imprensa alternativa que não recebia verba da Coroa, de alforrias que estimulavam a impunidade reinante com objetivo claro

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de esvaziar denúncias de malversação do Erário que começavam a vazar, o Mordomo não alcançava qualquer unanimidade nem mesmo entre os comandados.  Os complôs em torno da administração ganhavam força: a passadeira queimava a borda dos lençóis de fino linho egípcio, com brasões reais bordados a ouro.  O encanador afrouxava as juntas do bidê da intimidade do casal, criando constrangimento real.  As selas, onde se assentavam os traseiros mais requintados do Reino, viviam ensebadas.  A própria Lady Birminghan passara pelo desconforto de irritar as partes íntimas no galope.  Enquanto outras raparigas virgens temiam por sua rara condição - ainda em uso na época - ameaçada pelo desleixo da criadagem.  Um jovem cavalariço foi despedido, flagrado, por assim dizer, deslizando a mão no pudor alheio.

Em suma, todos pareciam sofrer com reuniões e discursos enfadonhos, onde o Mordomo Real tecia comentários jocosos sobre tudo, intrometendo-se em tudo, ditando regras para tudo:

- “Não é bem assim, companheiros vassalos. Nenhuma estatística descreve quem tem fome. Quem tem fome não diz que sente fome, porque tem vergonha de dizer que está com fome”, enfatizava, batendo na barriga protuberante.  

Mais além, diante da platéia interiorana das origens modestas, ele enfatizava que a elite não conseguiria apeá-lo do cavalo: “os corruptos do Reino serão punidos, doa a quem doer; vou cortar na própria carne se preciso for”, berrava em ato de pura verborragia, objetivando manter o cargo privilegiado. 

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O castelo, outrora um paraíso, se transformara num inferno!  Os súditos que comungavam com o mordomo – a maioria espertamente, em benefício próprio ou em troca de favores pessoais inconfessáveis – sobreviviam com alguma paz. Alguns, surpreendidos no delito do ofício, iguais ao tesoureiro Dilúvius nos Ares, mais o agente Malérius Maléficus, por exemplo, eram mantidos na impunidade, acobertados pelo longo véu da camaradagem pessoal e partidária.

Assim, o castelo foi ficando mais silencioso.  Enquanto o mordomo discursava com maior competência e apurado domínio das palavras, uma oposição radical e raivosa estava se formando.  Os donos reais, Sir e Lady Birmingham ausentes como sempre da cena feudal, mantinham a ilusão de que tudo estava como antes no castelo de Abrantes, cultivando vastos campos de chá no sul da Índia colonizada.

A criadagem fingia que se revoltava, enchendo o bolso com a grana verde despachada em malas pretas, recebendo reais de procedência duvidosa, inclusive vistosos dólares foram descobertos na cueca de um simplório vassalo.  Enquanto outros, do escalão superior, sacavam na boca do caixa do Banco Feudal para depositar nas contas fantasmas de paraísos fiscais. 

Apesar dos índices de aprovação divulgados por estatísticos reais, eles próprios colocavam em xeque os palpites do Mordomo - oh, pecado inominável! – contestando até mesmo os percentuais financeiros ministeriais.  Porém, o jocoso Louis Ignation jurava que aqueles índices não revelavam a realidade que ocorria no íntimo mais profundo de quem tinha fome e não declarava: os sem terra, os sem-teto, os

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sem grana e, mais recentemente, os sem sexo!

Mais uma vez o Mordomo Real se imiscuía na seara do conhecimento alheio, criticando estatísticos a serviço da Coroa, garantindo que ninguém entendia mais de fome que ele próprio.  Intempestivamente, tocava a administração sem qualquer currículo, na base do discurso demagógico, da incompreensão dos métodos do Castelo de Buckingang que mais parecia uma construção de periferia, distante daquele charme poliglota deixado pelo antecessor Lord Ferdinand Henriques, o Impávido, embarcado, como os demais (que não constavam nas listas de benesses nem do chamado “Mensalão”) na oposição mais ferrenha, patrulhando as intempéries discursivas do Mordomo Real.

A partir das evidências, alguns sentiam na pele os efeitos dos discursos exaltados, da mudança nas regras por conta de medidas provisórias ditadas ao prazer do Mordomo.  Segundo a criadagem mais antiga, por falta de habilidade e pura impertinência, o Castelo de Buckingang entrava em processo de degradação. Rachaduras pipocavam aqui e acolá, produzidas pelas denúncias surpreendentes de Sir Bob Jeff, cavaleiro feudal dos mais antigos, destemperado representante da Câmara dos Lordes, vinte e tantos anos de participação no tilintar mais íntimo da Corte.  Enquanto parte da criadagem permanecia fiel ao Mordomo, a vassalagem indignada assaltava os cômodos do castelo, criando problemas ao discurso intermitente que não resolvia as dificuldades essenciais dos servidores reais:

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baixos salários, falta de assistência médica e moradia, aperto fiscal, aumento de impostos, impunidade generalizada. Em nome da ordem, o discurso demagógico tentava dizer à massa que tudo estava azul, no caminho da redenção e do progresso. 

Por outro lado, a maledicência rolava impiedosa nos porões mofados da corrupção que emanava do castelo.  Porém, o Mordomo sabia que as festas natalinas chegariam, mais o carnaval, as festas juninas, os feriadões que fazem a alegria da turba e o desespero das finanças reais, combalidas por conta da malversação do Erário e dos homens públicos.  O Mordomo não percebia que a impunidade de Sir Wald Niz, especializado em achacar contraventores, colocara a administração em xeque, por conta do alvará de soltura expedido pela Eminência Parda que absolveu os companheiros acusados de incursões aos reais da Coroa.  Daí brotou a denúncia do Correio Real e o mundo veio abaixo.  Sir Bob Jeff flagrou o agente Mau Marinho com a mão no pacotinho e abriu o bico largo.  Enfático e teatral, porém certeiro, ele desferiu socos e pontapés na vassalagem, derrubando mitos, apeando poderosos da montaria.  Até que alguém jogou um armário nele, provocando um olho preto daqueles.  Justo em cima de quem, igual a tantos cavaleiros do passado, alardeava ter aquilo roxo...

As denúncias lançariam notáveis ao limbo: Joseph Tesseu, Jão Talo Tunha, Joseph Genuinus, Buda Nem Dança e outros.  Um time completo com oito reservas!

Neste carrossel de revelações, acabou sobrando para figuras do primeiro escalão que renunciaram espertamente, visando imunidade e direitos políticos.  Outros

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foram forçados a renunciar, enquanto a Corte reunida extraordinariamente pensava em cassações e masmorra, desencadeando um escândalo digno do Reino!  

Porém, logo rolariam a bola e os campeonatos de futebol, mais a tradicional queima de fogos, na passagem de ano, e tudo voltaria ao marasmo de sempre no castelo do faz de conta.  Os súditos continuariam vivendo em paz, graças aos céus, pagando juros antecipados ao FIM, é verdade, porém, salvos do pandemônio das guerras, do terrorismo e da poluição global que rolava no restante do Planeta.  Todos saboreando uma cerveja estupidamente gelada, às margens do grande lago Pára-noar!

Deus é brasileiro e os súditos já sabiam.  Ninguém é de ferro nem honesto o suficiente para se manter acima de qualquer auditoria.  Breve, aconteceriam a CPI dos Correios, o “Mensalão”, os dólares na cueca, as malas do Reino de Deus, o “apagão”... 

O Castelo dos sonhos ruía diante dos olhos pasmos de quem ainda sonhava com a ordem e a eqüidade nas cavalariças do Reino.  Aliás, lotada de vassalos ansiosos - desde o tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça - para botar os beiços na ração privilegiada dos situacionistas da Corte. 

Após 25 anos de ostracismo e muito cassetete nas costas, a oposição tomava assento no poder para alegria de uns e desespero de outros que arrumavam malas negras estufadas de grana verde, no rumo do Exterior - ameaçando quebra na Bolsa e naufrágio das finanças reais que, apesar dos pesares, navegavam em mar de almirante, controladas por Lord Pallocius – o incorruptível que terminou cassado!

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Daí, não deu outra.  Os fiéis depositários da velhíssima democracia, visceralmente atentos ao exercício do novo poder, se empenhavam em subjugar hostes palacianas dominantes, flagrando a equipe do Mordomo Real com a mão no feno transgênico, na massa, propriamente dita, manipulando cargos e finanças, praticando expediente escuso para desfrutar das mordomias da Coroa.  Arrancando impostos aos torcedores do esporte bretão criado para deleite da massa oprimida de operários, sem-terra e sem-nada, sempre às turras com algum protesto popular.

A invenção do futebol virou epidemia e solução para amenizar dificuldades com habitação, saúde, transportes, justiça e malversação de fundos oficiais, dilapidados pelos próprios agentes da Coroa, eleitos pelo voto democrático sem vergonha, popular e obrigatório, que reelegeu toda a súcia por mais quatro anos!

Salvo o controle da inflação, mantida com olhar seminarista e mão de ferro por Lord Paloccius, o chefão da “Casa do Lago”, a administração do Castelo de Buckingang ardia em chamas, tão graves as descobertas de malversação e roubo propriamente dito. 

As denúncias de Sir Bob Jeff implodiram o Castelo!  Mallérius Maléficus, Vernanda Carabina, Semnome Vai Com Celos e Buda Nem Dança, se transformaram em alvo da mídia poderosa, habitualmente controlada por verbas polpudas da Coroa que paga os anúncios de página inteira em jornais e revistas, mais a propaganda televisiva em horário nobre - caríssima! 

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Evidente que a mídia se revoltava contra os mantenedores oficiais, residentes do suntuoso e iluminado Castelo de Buckingang, contra a própria regência de Sir Louis Ignation – o Destemido, agora chamado de “último a saber”.  Segundo a oposição mais encastelada e empedernida, ele seria “um corrupto, quiçá, um idiota”...

Tantas denúncias lançadas ao vento, mais a titica atirada sem dó nem piedade no ventilador real, uns e outros ainda se esforçam para retirar a lama do castelo, visando as eleições que dependeriam do resultado das CPIs em curso. Porém, os súditos que aguardavam justiça desde os tempos do Império, dos anos de chumbo grosso, votou desastradamente, pela manutenção do Estado corrupto.   

E tudo se transformou numa pizza do tamanho de um bonde, como tantas outras arquivadas no limbo da história nacional por excesso de denúncias, imunidade parlamentar e excesso absoluto de provas...  

Toni Marins, jornalista 

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