São Paulo 3 de abril, 2006. A quem de direito: O senhor Bruno Daniel e sua espôsa, Sra. Marilena Nakano, são professores da universidade brasileira. Eles também são militantes empenhados na defesa dos direitos humanos no Brasil. Durante a ditadura militar, a Sra. Nakano foi prisioneira como resultado de sua luta em favor da democracia. Com profunda tristeza devemos constatar que nosso país ainda guarda muito da insegurança trazida pelo regime autoritário. A família Daniel é hoje a primeira família brasileira a ser forçada a um exílio involuntário, após evidentes ameaças de morte. O irmão do Senhor Bruno Daniel, Celso Daniel, prefeito da grande cidade de Santo André (São Paulo), tesoureiro da campanha eleitoral do Senhor Luis Inácio Lula da Silva (atual presidente do Brasil) foi assassinado como fruto de um assunto de corrupção política cujo rumor abala neste momento o governo da República. Celso Daniel foi torturado brutalmente antes de sua morte. Só após a entrada em cena dos membros do Ministério Público paulista as investigações foram remetidas à Justiça, onde estão em poder de um Juiz. Como os fatos ligados à morte de Celso Daniel ameaçam grande parte do governo e do Partido dos Trabalhadores, o assunto foi levado para uma Comissão Parlamentar de Inquérito em nível federal. As ameaças contra o Senhor Bruno Daniel e sua família, e também contra seu irmão João Daniel, os quais se apresentaram diante da referida Comissão, a cada dia se tornam mais aterrorizantes. Pedimos às pessoas de bem ajuda à família Daniel, na esperança de que em breve tempo ela possa voltar ao Brasil. Roberto Romano da Silva.
A carta acima, no original em francês, entra no rol das recomendações escritas por pessoas ligadas aos direitos e à democracia, acolhidas pela França ao conceder asilo político aos Daniel. Na missiva, sublinho o papel do Ministério Público, das poucas instituições brasileiras a usufruir fé pública. A eficácia de seu trabalho está ameaçada pelos que exilaram aquela família. Indicado (05/12/2003) como mandante do homicidio contra Celso Daniel, Sergio Gomes da Silva teve denúncia acatada pelo magistrado Luiz Fernando Migliori Prestes. A polícia civil não pode cumprir a ordem de prisão e a apresentação do réu foi negociada entre autoridade policial e defesa. Esta impetrou Habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, porque o Ministério Público não poderia investigar. O TJ afasta a tese de que o MP não pode investigar. A defesa recorre ao Superior Tribunal de Justiça. Cinco ministros daquela corte julgam o recurso e decidem pela legalidade da prisão, sem ver irregularidades na investigação do Ministério Público. Não há recurso desta decisão, que transitou em julgado. O recurso passa pelo crivo de dez magistrados (um Juiz, quatro Desembargadores do TJ/SP e cinco Ministros do STJ).
O acusado pede Habeas corpus ao STF em julho, mês de recesso forense da corte. As liminares são apreciadas pelo seu Presidente. Nelson Jobim concede a liminar sem ouvir o STJ e solta o acusado. Fim das férias, o processo é entregue ao Ministro Marco Aurélio. Este, com parecer da Procuradoria Geral de Justiça pelo indeferimento do Habeas corpus, remete o caso ao Pleno do STF para análise da investigação pelo Ministério Público. Marco Aurélio aceita o pedido do acusado para reconhecer a nulidade da investigação feita pelo Ministério Público. Sepúlveda Pertence declara que o Ministério Público pode realizar investigações. Cezar Peluso pede vista dos autos. O julgamento será retomado quando ele proferir o seu voto.
Caso se defina a investigação pelo Ministério Público como ilegal, o processo deve ser anulado desde 2003. O crime volta a ser o da violência urbana ordinária: seqüestro seguido de morte. O julgamento cria precedente do STF sobre o direito do Ministério Público investigar. Denúncias oferecidas com base em investigações do Ministério Público podem ser rejeitadas. Processos já julgados serão objeto de exigências para anular condenações, sempre que tenha ocorrido investigação do Ministério Público. A impunidade dará um passo sem volta. O exílio da família Daniel, portanto, pode ser o fim das investigações pelo ministerio Público. A cidadania perderá mais direitos em prol da improbidade e da violência política. As pessoas retas do Brasil serão levadas ao exílio em sua própria terra. Triste Estado, tristo governo, triste justiça.
* Roberto Romano da Silva, professor titular de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, professor de Ética (também pela Unicamp), doutor em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e membro do Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas da Unicamp, é autor dos livros "Brasil, Igreja contra Estado" (1979), "Copo e Cristal, Marx Romântico" (1985) e "Conservadorismo Romântico" (1997). Seus artigos são publicados semanalmente no "Correio Popular", de Campinas.