Um Natal marcante...

Existem momentos na vida da gente, que nunca o esquecemos. Esse Natal, do qual não lembro o ano, mas que teria sido entre 72 e 77, tocou-me profundamente. O personagem em questão, Itamar, foi um andarilho, conhecido no Parque São Caetano, mas que não recebia o menor carinho, respeito e dignidade dos seus parentes, que viviam na mesma rua, e à poucos metros de um dos muitos terrenos baldios, por onde ele construiu sua casa.
Itamar marcou profundamente a sua passagem, pela simplicidade, amor, fé e subserviência naquilo que Deus havia lhe reservado.

Um homem que havia tido uma vida financeira estável, e através dos falsos-amigos, e das coisas "mundanas" como ele dizia, perdeu tudo, exceto a dignidade e a vontade de pregar a Bíblia, todos os dias, às 6 horas da manhã, e às 6 da tarde.
Trabalhador, honesto, simpático com todos os moradores, Itamar foi um "grande amigo", fiel companheiro, e estava sempre pronto para ajudar, como por exemplo, limpar as caixas de gordura, capinar um terreno, limpar o gramado, e não perdia a pose com seu velho e surrado terno preto.
Não tinha mais ambição, e trabalhava apenas para suprir as suas necessidades. Vendia o que produzia e trocava as mercadorias, apenas para satisfazer aquele momento.
Itamar foi um herói.
Um herói que viveu, lutou e conseguiu provar que a vida de sacrifícios é muito mais honrada do que trabalhar armando planos para ser bem-sucedido, através de falcatruas.
Há algum tempo atrás, eu ainda tive o prazer de vê-lo por duas vezes, uma na Rodoviária Roberto Silveira, e a outra no bairro onde passei a maior parte da minha adolescência.
Creio que ele não reconheceu-me, mas isso não importa. O que importa, é que ele ainda está presente dentro de mim, e como disse um professor, "ele ainda é um imortal que vive dentro de cada um de nós (eu), enquanto estivermos sempre lembrando dele".
...
Podia ter sido um Natal como outro qualquer, ou como tantos Natais que passamos juntos em família, mas aquele Natal ficou marcado para sempre em minha vida, e acredito que até mesmo para os meus pais. Na época eu morava no Parque São Caetano, Campos dos Goytacazes, bairro tranqüilo onde os vizinhos eram ótimos, e a garotada mais ainda, porque todos faziam parte do mesmo time de futebol. O ano, eu já nem lembro mais qual foi, porque naquela casa, eu residi entre 1972 e 1977.
Como acontecia em todos os anos, e principalmente na véspera de Natal, pela manhã havíamos acompanhado o meu pai até o Mercado Municipal, onde ele fora evidentemente, fazer as compras para a ceia. Quando voltamos, cumpri com o restante das minhas obrigações, ajudando a minha mãe em alguns afazeres domésticos, para então poder ir ao campinho jogar um pouco de futebol. Enquanto isso, minha mãe e meu pai se encarregavam de preparar o almoço e os quitutes para o jantar.
Após o almoço, como de costume, fomos para o nosso quarto descansar. Quando acordamos já bem de tarde, meus pais nos liberaram para jogar futebol de novo, enfim, o que eles mais queriam é que ficássemos um pouco longe de casa, enquanto eles preparavam tudo da melhor maneira possível.
É bem verdade que, enquanto eu e meu irmão, estávamos fora de casa, havia chegado algumas lembranças como de costume em todos os Natais. A loja, Machado Vianna, mandava como em todos os anos, um peru vivo, para minha mãe matar, e preparar para a ceia, além de uma enorme cesta de Natal com diversos produtos, e muitas garrafas de vinho entre elas, uma de quase cinco litros. Fora outras lembranças e cartões de Natal que o meu pai ganhava de inúmeros amigos.
Ao entardecer voltávamos do futebol, tomávamos os nossos banhos e ficávamos em frente à televisão esperando à hora da ceia, que normalmente acontecia por volta das 21 horas. Até porque acordávamos muito cedo e nesse horário já estávamos mais do que cansados.
Na hora da ceia, estávamos assistindo a mais um show do Roberto Carlos na televisão, quando de repente, meus pais lembraram da enorme garrafa de vinho que havíamos recebido de presente da Machado Vianna e, numa rápida conversa decidiram dar aquela garrafa para a única pessoa que sabíamos, iria adorar, ganhar aquela garrafa, Itamar.
Itamar era uma pessoa solitária, que vivia precariamente num terreno baldio. Abandonado pela família, que curiosamente residia a poucos metros do terreno, em que ele havia construído o seu barraco, e vivia da venda dos produtos que ele colhia no terreno. Onde ele habitava, havia mamão, banana, tomate, aipim, tempero verde, alface, couve e até abóbora. Curiosamente ele vendia tudo o que colhia, mas não visava ao lucro, apenas o necessário para comprar pão e algumas gramas de mortadela. Não bebia, não fumava, e não era um viciado em drogas, até porque naquela época, quase não se ouvia falar em drogas. Ele ainda vivia da venda das latas de óleo de soja, e margarina, que conseguia no lixo. Para se ter uma idéia, uma vez foi necessário que dois caminhões levassem a enorme quantidade de latas de óleo, que ele havia juntado.
Apesar de viver quase que na mendicância, Itamar procurava por todos os meios lutar contra aquela situação, não sossegava um minuto sequer, acordava cedo todos os dias e entre as inúmeras latas que ele conseguia, ele fazia diversas coisas, desde carrinhos de lata, pás e cestas de lixo, panelas e outros utensílios que não consigo lembrar. Mas, todos os dias às 6 horas da manhã e da tarde, ele fazia as costumeiras pregações da Bíblia, em uma calçada vizinha a casa dos seus parentes, que sequer lhe forneciam um copo de água.
Mas naquela noite, meu pai e minha mãe, pediram-me que fosse até o terreno chamar por ele, para lhe dar um pouco da nossa ceia e a garrafa de vinho. Quando cheguei perto do nosso portão, pude ouvir as batidas que ele dava em alguma lata ou panela, e entre as batidas, a sua voz cantando uma canção religiosa em louvor a Deus. Atravessei a rua, cheguei na entrada do terreno e gritei várias vezes até que ele pudesse me ouvir. Quando gritava chamando por ele, eu o fazia no pequeno intervalo entre uma batida e outra na panela, até que repentinamente, o barulho cessou. Alguns segundos depois percebi um movimento entre o matagal, e ele veio até o portão, onde eu lhe pedi que trouxesse um prato, para que pudéssemos dar um pouco da nossa ceia. Ele voltou até o barraco, e trouxe uma lata de goiabada, pois não tinha pratos, e até mesmo os talheres e o seu copo eram de lata.
Levei aquele que seria o seu prato, para minha mãe, ela então pegou um dos pratos de papelão que possuía, um jogo de talheres que usávamos e, preparou o prato com uma parte da nossa ceia. Meu pai, enquanto isso estava no portão de nossa casa, conversando com ele, e eu, ainda fui pegar a enorme garrafa de vinho para lhe dar.
Quando lhe demos uma parte da nossa ceia e a garrafa de vinho, vi em meio a escuridão daquela noite, um brilho nos seus olhos, eram lágrimas de agradecimento, pelo que estávamos fazendo. Dar um pouco do que tínhamos para ele.
...
Itamar era assim, um homem simples lutador, trabalhava como ninguém, não fazia mal a nenhum de nós, que morávamos naquela rua. De vez em quando ele interrompia as nossas peladas para correr atrás da bola, mas cansava com o baile que dávamos nele. Era um homem alegre, fanfarrão, mas como disse acima, não possuía vícios.
Daquela casa, no Parque São Caetano, onde morei por alguns anos, fomos para o Rio de Janeiro. Voltamos três anos depois, mas para residir no centro da cidade e posteriormente no Horto. Nesse período nem lembro das poucas vezes em que o vi. Fomos para o Espírito Santo, voltei com meu pai para o Estado do Rio, e somente a pouco menos de três anos, é que o vi, duas vezes. Uma na Rodoviária Roberto Silveira, quase ao meio-dia, fazendo a sua pregação bíblica, a outra vez, fora no bairro onde havíamos residido.
Até que um dia, eu soube de sua morte, por aquela que havia sido uma das grandes amigas da minha mãe.
Desde que comecei a pensar em escrever, nunca esqueci desse Natal em particular, e isso deve fazer quase trinta anos, e jurei para mim que se conseguisse publicar um dia um livro de crônicas, este Natal seria lembrado e perpetuado para sempre.
Não sei dizer, confesso, se vocês consideram este texto como uma crônica, ou preferem que ele seja apenas um relato de uma noite de Natal, mas deixo estas linhas aqui escritas como uma homenagem a aquele que tentou de uma maneira ou de outra transmitir a sua mensagem de amor, de trabalho e de fé em Deus, com o que tinha em mãos. Para vocês que estiverem lendo esse texto, lembrem-se de que no mundo, há milhares de pessoas vivendo como o Itamar, e que nessa noite, não possuem sequer um prato de comida, ou um copo de vinho, para brindar o nascimento de Jesus. Ao Itamar, desejo apenas tardiamente, que você descanse em paz, e de preferência ao lado d´Aquele a quem você tanto amou, Jesus Cristo.
...
Feliz Natal e um Próspero Ano Novo!

O autor é Bacharel em Jornalismo, e viveu a sua adolescência no Parque São Caetano, Campos dos Goytacazes, RJ, onde guarda com carinho inúmeras lembranças de sua passagem por ali.
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