As tendências parecem fortes: a polarização entre direita e esquerda, mais precisamente, entre os polos extremos do arco ideológico, não será atenuada. Ao contrário, a probabilidade é que se expanda sob a hipótese de que é do alto interesse do bolsonarismo manter a chama acesa como forma de manter permanente mobilização de exércitos simpatizantes do capitão.
No contraponto, os enclaves oposicionistas, divididos entre partidos, tentarão integrar suas forças e apostar numa grande frente de combate à escalada direitista no país.
A incógnita gira em torno da liderança capaz de organizar articulação dessa amplitude, havendo quem aposte no nome de Luiz Inácio, hoje preso, mas caminhando para eventual liberação, que até pode ser a prisão domiciliar, situação, ao que se sabe, rejeitada pelo ícone petista.
Lula tem dito que só aceita a liberdade se ela vir com o figurino completo, ou seja, sem adereços para incomodá-lo, caso de uma tornozeleira eletrônica. Ademais, há dúvidas se ele, solto, continuaria a usufruir direitos políticos. A interpretação vigente é a de que o ex-presidente, mesmo libertado, só poderia ser candidato ao completar 89 anos. Mas teria condição legal para liderar uma frente oposicionista?
Enquanto seus advogados lutam por sua liberdade e regate dos direitos políticos, os sinais no horizonte apontam para um jogo recíproco de interesses. Bolsonaro gostaria de ver Lula como alvo preferencial - sob o argumento de que ele é um demônio capaz de vestir o país de vermelho –, enquanto o ex-metalúrgico gostaria de mirar nesse capitão que defende a ditadura, faz loas a torturadores, ameaçando fazer o país regredir aos idos de chumbo.
Ocorre que a política, como água, caminha sinuosa entre as reentrâncias das pedras. Não depende apenas da vontade de seus comandantes. Depende de fatores como satisfação, social, segurança coletiva, sensação de que as coisas estão melhorando. E, que fique claro, a política navega ao sabor das circunstâncias.
Analisemos essa última hipótese. Podemos projetar a continuidade do discurso polarizado entre direita e esquerda, o bolsonarismo e seus contrários. Logo, é possível aduzir que amplos segmentos sociais - particularmente habitantes do meio da pirâmide - não suportarão conviver por muito tempo com lengalenga raivosa, tiroteios recíprocos, como se o país fosse puxado por um cabo de guerra.
Mais cedo ou mais tarde, a saturação da artilharia expressiva chegará ao pensamento racional, afastando milhões de brasileiros dos conjuntos emotivos que se esgoelam. Conhecendo um pouco as motivações que mexem com a índole nacional, pode-se enxergar o início de um processo de esgotamento do discurso sem eira nem beira, apenas focado no ataque recíproco.
A partir dessa óbvia constatação, continua-se a aduzir que não haverá clima para guerras violentas, ataques suicidas, ressurreição da ditadura, como alguns preferem. Os contingentes do meio da pirâmide, como o agrupamento de profissionais liberais, enxergarão a melhor maneira de atravessar o cabo das tormentas: as águas mais calmas que correm no meio do oceano.
A imagem é a de um mar se abrindo para dar passagem aos núcleos racionais, ordeiros, perfilados sob a bandeira do crescimento e dispostos a escolher seus dirigentes entre aqueles que encarnem a ordem, a harmonia, o aperfeiçoamento institucional.
Dito isto, emerge nos horizontes sociais o florescimento de um gigantesco corredor central, onde partidos políticos, organizações não governamentais, associações de todos os tipos e suas lideranças, se darão as mãos em torno de um projeto de união nacional.
Chegar-se-á facilmente à hipótese de que a salvação do país não sairá dos extremos do arco ideológico, mas dos protagonistas do meio. Novos figurantes se mostrarão, com ideias, propostas e visões. Os radicalismos serão naturalmente eliminados ou, em alguns casos, reduzidos a dimensões bem menores e até previsíveis no bojo de uma democracia.
Em suma, sairemos do apartheid social para ingressar num espaço de convivência e ouvir um discurso menos conflituoso. A imagem é utópica? É possível. Mas nossa índole não se acostuma com a beligerância que consome energias e dispersa esforços.
2022 está longe. Veremos, ainda, nuvens pesadas sobre algumas Nações. A vitória de Trump em novembro de 2020 não é mais uma certeza. E se a recessão pegar de chofre os EUA, sentiremos por aqui os reflexos. Demos tempo ao tempo.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato