Nos últimos anos, ninguém que se dedique minimamente à reflexão sobre a política brasileira ou sobre o acirramento da desigualdade social consegue escapar do enorme peso que a temática da violência assumiu nos fatos cotidianos da vida. Relatórios de organizações não governamentais, tais como da Anistia Internacional, por exemplo, não deixam esquecer os massacres nas periferias brasileiras, caracterizando o país como um dos locais que mais matou e mata jovens quando comparado às maiores zonas de guerra no mundo.
Segundo o Atlas da violência (2017) divulgado pelo IPEA, o grupo mais afetado é formado por jovens pobres, negros e de baixa escolaridade, sendo eles os mais susceptíveis aos incidentes violentos e letais. Indivíduos esses, que permanecem desempregados, sem quaisquer oportunidades e perspectivas futuras, com uma frustração continuada nas esperanças de mudança de vida e nos seus projetos de realização pessoal. Vítimas da discriminação e da marginalização, que não são vistos como candidatos reais à inclusão social. Antes disso, colocam-se como seres que compõe uma espécie de ‘sub-humanidade’ brasileira, isto é, ocupam territórios a-legais, com direitos declarados, mas oficialmente não reconhecidos pelo Estado.
Nesse cenário de recrudescimento da exclusão social e do fracasso nítido dos direitos de cidadania, a ‘cultura da violência’ aparece, de acordo com Átila Roque (diretor-executivo da base da Anistia no Brasil), como um renovado “desejo de vingar a sociedade”. Os usos da força e de seus instrumentos de violência eclodem como meios para recuperar o suposto ‘controle social’ perdido, explicitando ainda a baixa eficiência do governo na condução de suas políticas de segurança pública. Ressurgem assim, como uma espécie de ‘lança de Aquiles’, isto é, como sendo a única capaz de curar as feridas que infringiu. No entanto, se isso fosse realmente verdade, a vingança seria a cura para a maior parte dos nossos males sociais.
O fato é, que quanto mais dúbio ou incerto tornou-se o uso da violência no Brasil, mais atração e notoriedade na política interna esse ganhou. Por isso, pretendo destacar aqui que os recentes apelos político-sociais às formas militares de intervenção nas favelas do Rio de Janeiro, por exemplo, e a criminalização da pobreza e os pedidos de impunidade à violação dos direitos humanos em tempos de ‘exceção’, são resultados expressos do fracasso da política no país, da deliberação democrática e do próprio Estado de direito.
Ao invés de debatermos a melhoria das condições de vida das populações vulneráveis, dos degradados e dos jovens excluídos, passamos a defender discursos de ‘ordem’ sob a regência de uma ‘lei’ que não considera os conglomerados humanos que estão fora do garantismo social fornecido pelo Estado de direito brasileiro. Ao invés de aprimorarmos a qualidade das organizações de segurança pública e de reformarmos o sistema prisional, apenas destinamos nossos esforços para uma maior letalidade policial e para a concessão de ‘permissões federais’ que possivelmente culminarão em quadros renovados de violência contra jovens, negros e mulheres nas periferias do Brasil. A violência institucionalmente empregada não pode e não poderia representar nenhum tipo de ‘vitória’ nacional, uma vez que o preço a ser pago é muito alto, tanto para os ‘derrotados’ quanto para os ‘vitoriosos’, já que não se concebe nenhum poder verdadeiramente democrático a partir de abusos e traumas sociais. Como recorda Hannah Arendt (2004) em Sobre a violência, “[...] a prática da violência como toda ação, transforma o mundo, mas a transformação mais provável é em um mundo mais violento”.
Pretendo finalizar aqui – longe da hipocrisia que tomou conta das maquinações midiáticas e manipulações que permitem aos governantes utilizarem o emprego de meios violentos para contornar sérios problemas socioeconômicos, ou que visam promover a violência para suprimir a violência –, que esses artifícios de conveniência não podem ser vistos pelos brasileiros como comportamentos políticos ‘razoáveis’. Eles apenas demonstram a falta de preparo das autoridades em lidar com dificuldades macroestruturais, ou seja, sinalizam com veemência a erosão das bases político-democráticas brasileiras, a decadência dos direitos cidadãos, a fragilidade dos serviços públicos nacionais, sendo, portanto, resultados lógicos das necessidades de uma sociedade que não foram devidamente contempladas.
As rachaduras no sistema de poder nacional e nas nossas instituições se abriram e se alargaram. Vazaram. E, o ponto mais alto desse rompimento se traduziu na busca do uso da violência e da força contra grupos, em sua maioria, que se encontram em situações de vulnerabilidade social e de falta de reconhecimento. Demonstram, acima de tudo, a impotência da política brasileira em arcar com as suas contradições internas e suas desigualdades extremas.
Vanessa Capistrano Ferreira
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP). Mestre em Ciências Sociais e Bacharel em Relações Internacionais pela Unesp/Marília. Pesquisadora da linha de "Direitos Humanos, Migrações e Novas Subjetividades", no Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI/IPPRI) e membro do Grupo de Pesquisa em Relações Internacionais e Política Exterior do Brasil na área de "Direitos Humanos e Relações Internacionais".