O Brasil sempre se orgulhou de ser um país da tolerância, no entanto, nas últimas décadas, à luz dos debates empreendidos pelos movimentos sociais, tenho a impressão cada vez mais absoluta de que a tolerância se aplica apenas ao que há de mais intolerante e intolerável desde a gênese da sociedade brasileira. Dentre todas as formas de intolerância que o brasileiro comum, supostamente cordial, é capaz de aceitar e exercer está a discriminação religiosa. A notícia da menina de 11 anos apedrejada por ser candomblecista que correu as redes sociais este mês, bem como a morte de um médium do centro espírita Lar de Frei Luiz, célebre centro Kardecista no Rio de Janeiro, suscita uma questão não suficientemente elucidada: Somos de fato um país da coexistência?
Pistas para essa resposta podem estar na nossa História, se lembrarmos que a formação do sentimento de ser brasileiro ocorreu gradualmente no seio de uma sociedade profundamente desigual e implacável contra tudo que era diferente do modelo europeu que tentou se impor sobre outros modelos de existência social. Ora, historiadores ilustres dirão que nunca fomos europeus, isto é verdade, e também verdade que essa tentativa de colonização foi imperfeita pelo próprio caráter da população sobre a qual esse modelo reinol teria que se conformar. Porém, isto não significa que a tentativa de nos tornar o Um não tenha resultado em um código ainda pior de intolerância em relação ao Outro que escapasse ao modelo cultural do Ocidente, especialmente ao cristianismo. Em outras palavras, não se assombrem, o preconceito pode morar na proximidade. A tentativa secular de tentar a qualquer custo ser o que não somos mistura-se ao nosso risível complexo de vira-latas e... Bingo! Temos um país profundamente conservador e ridículo como uma criança calçada com um sapato de salto alto.
Não bastassem os jesuítas, os inquisidores, os capitães do mato, os bandeirantes e a polícia republicana de um país que passou cinco séculos amedrontado e, simultaneamente, fascinado pelos feitiços, batuques e festas realizadas pelos negros nas proximidades das "casas grandes", temos agora uma nova leva de soldados de Cristo saindo do forno. Só que agora as cores se misturam. O fato que esse sectarismo cresça, talvez pela primeira vez, junto aos setores menos favorecidos da sociedade, especialmente afrodescendente, é um paradoxo tão grande e grotesco como só a pós modernidade global poderia oferecer. A nova perseguição das religiões de matriz africana - bem como de outras religiões, inclusive por analogia de qualquer coisa que não seja o cristianismo com “macumba” – está começando a chegar às páginas de jornal e assusta pela rapidez com que avança. O catolicismo também pregou seu discurso de intolerância com a religiosidade popular afro-brasileira, mas teve que conviver com ela e com ela se confundiu inúmeras vezes ao longo do tempo. O cristianismo protestante, ao contrário, especialmente o neopentecostal, pautado em um código moral muito mais austero, buscou a negação de todos os preceitos de uma religiosidade afro-brasileira, o que não significa que não se aproprie culturalmente de seus formatos (vide as sessões de “descarrego” na igreja mais próxima de sua casa). Movidos pela ignorância absoluta, pela ausência de sentido existenciale por uma leitura muito literal e rasa do livro mais vendido do mundo, centenas de pessoas estão se tornando cordeiros de líderes religiosos mal intencionados pensando que são os cordeiros de Deus.
A palavra sagrado adquire, nesse contexto, seu caráter etimológico mais negativo, isto é, aquilo que é colocado em separado, como separados estamos nos tornando uns dos outros. Veiculando um discurso de ódio e de desumanização, pastores de diversas igrejas estão se tornando verdadeiros fascistas dedicados a mobilizar as massas e penetrar a burocracia do Estado na surdina. Aliás, nem tanto na surdina já que a estética cafona desses cultos é a gritaria generalizada que já conduziu à popularização da frase “Deus não é surdo”. Não obstante Deus não seja surdo, boa parte dos evangélicos parece que está. Isso é nítido na forma como se posicionam no jogo das interações sociais e na forma como se recusam a ouvir as vozes que se levantam para dizer que, definitivamente, a religiosidade afro não é do Diabo. Até porque o diabo é uma invenção cristã, lembram? Mas é como diria a música de Roberto Carlos, “a covardia é surda e só ouve o que convém”. Claro que essa não é a conduta de todos os evangélicos, porém, os não fundamentalistas têm se omitido demais no debate público - talvez porque temam uma acusação interna de apologia aos ímpios. Desse modo, a forma como boa parte da comunidade evangélica brasileira constroe seus discursos, como se guetifica, como se porta como eleita de Deus, são posturas sociais que, a longo prazo, não podem conduzir à coexistência, apenas ao embate e à perseguição. Sim, corremos o risco de uma Jihad à brasileira. Parafraseando Caetano, o Irã é aqui/ O Irã não é aqui.
Sem dissertar sobre as raízes de tal fenômeno de intolerância como ele merece - deixemos aos sociólogos – me pergunto apenas o que, humanamente, sinto e devo dizer sobre essa menina que tomou uma pedrada ? Acho que quebramos vários pactos no Brasil dos anos 1980 para cá, o pacto do silêncio em relação à cor foi um deles. A religiosidade está profundamente relacionada a isso. Vejo esses ataques como reedições de uma estúpida violência colonial. Jesus Cristo teria vergonha dessas barbaridades cometidas em seu nome, tenho certeza.Não é a primeira nem a última vez que crimes hediondos serão cometidos em nome de Deus. É engraçado porque, ao mesmo tempo, sabemos que a intensificação da violência contra as religiões de matriz africana é fruto da afirmação das mesmas diante de uma violência maior e secular que legou à "questão afro" um lugar de silenciamento e subalternidade. Lugar este que, finalmente, começa a ser modificado. Isso incomoda alguns.
Talvez seja preciso, como colocou o filósofo italiano Giorgio Agamben, profanar a religião capitalista, especialmente a Teologia da Prosperidade. Afinal, com o perdão do trocadilho, templo é dinheiro. Vale lembrar a esse tipo específico de evangélico, que se considera superior às pessoas de outras matrizes religiosas, o que está escrito no próprio livro sagrado deles: "Se alguém declarar: “Eu amo a Deus!”, porém odiar a seu irmão, é mentiroso, porquanto quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não enxerga." (1 João 4:20).
Saravá!