MEU NOME É FAVELA

Política de inclusão Racial e Social

(Um diálogo histórico inter-racial e um alerta do passado)

Recife, Capitania de Pernambuco 1677 - É uma tarde de sol veranico num aglomerado de mocambos às margens do Beberibe, logo após Olinda. Seus habitantes são negros alforriados, caboclos, mestiços, índios Tabajaras, Tapuias, escravos fugitivos, brancos foragidos e toda sorte de gente menos favorecida, que a sociedade chama de escória. Todos, de uma forma ou de outra, produzem para esta sociedade, quer seja como cortadores de cana, lavadeiras, mucamas, mascates, servos, contadores ou carregadores do porto. Muitos servem nos elegantes sobrados coloniais da alta Olinda, ajudando a manter o fausto modo de vida de senhores fazendeiros, comerciantes e membros do governo, que disputam um espaço de fachada, de cinco ou seis braças, só para terem residência na rua principal. No entanto, essas construções com sacadas de rosáceas portuguesas, têm atrás de si verdadeiras chácaras e pomares criados e tratados por membros dessa escória. Este é o ano de 1677.

Foi um ano de boa colheita, comércio e várias remessas para a corte. Muitas sedas, especiarias, alfaias, cristais, mobiliário e azulejos chegam nos navios portugueses, que retornam carregados de produtos da colônia, levando ainda ilustres passageiros da elite ou ainda os filhos destes que vão estudar na Europa.
Porém, os pesados impostos, escassez de víveres, doenças, falta se medicamentos e descaso das autoridades pela sorte daquela maioria silenciosa e menos privilegiada, torna a vida desta ainda mais miserável.
O sol escalda a terra, fazendo estourar com um assovio as taquaras mais afastadas da água, quando Cabeleira chega com Anna Ferro e seu grupo. Chama os três primeiros homens que vê e diz:
– Avisai a todos os homens e mulheres que José do Vale está aqui e quer falar-vos.
Em pouco tempo uma grande massa indistinta na cor, mas idêntica na penúria, coloca-se diante de Cabeleira que, postado em uma elevação, percorre os olhos na multidão e diz:
– Todos vós me conheceis e tende recebido minha ajuda sempre que vossas vidas e as vidas de vossos filhos tornam-se angustiadas pela fome. Dizem que sou bandoleiro, salteador ou pirata, por pilhar entrepostos ribeirinhos dos portugueses ou opulentas propriedades de fazendeiros que utilizam o trabalho escravo. Entretanto, tudo que faço, faço para impedir que pessoas como vós morram de fome, ainda que servindo os senhores e príncipes da coroa. Porém, aglomerados e mocambos como estes vossos, estão se tornando cada vez mais numerosos por todas as partes desta capitania e, conseqüentemente, os víveres, roupas, mantimentos e medicamentos que eu, com minha tropa tomamos dos ricos, tornam-se cada vez mais insuficientes. Eis que é chegada à hora de ajudar-vos mutuamente providenciando vossas próprias necessidades e defendendo vossas existências.
– Mas como faremos isso? – pergunta um dos homens.

– Tomai por base os quilombos. Os escravos rebelaram-se contra seus amos e, fugindo, formaram seus próprios redutos, estabeleceram suas próprias leis, sua agricultura e sua defesa. São perseguidos pelos brancos mas não passam fome, necessidades ou vergonha. Quando morrem é em defesa de seus ideais e da liberdade que conquistaram. Vós sois aparentemente livres, mas, na realidade, não passai de escravos de uma condição que vos foi imposta pelos senhores dos feudos. A isto, nós chamamos de idolatria do Estado, ou seja, o Estado interfere em tudo e todos e, tudo e todos pertencem ao Estado. É claro que nada sobra para vós, ante a voracidade dos senhores príncipes.
– Mas eu sou branco! – exclama um dos presentes.
– Sois branco, como outros tantos brancos miseráveis que aqui estão, e nem por isso vossos ricos irmãos brancos vos dão ajuda ou pão. Se, realmente, se considerassem uma raça superior, não permitiriam que um membro de sua raça passasse fome. Não existe diferença racial, existe sim, diferença social por razões pecuniárias e culturais, ou por razões geográficas.
Os olhos de Cabeleira já faíscam, quando um cafuzo de nome André Potí adianta-se e diz:
– Sou um Zambo, filho de pai africano com mãe índia da tribo dos potiguares. Carrego nas veias o sangue da insubmissão, rebeldia, coragem e altivez. Tomei por mulher a filha de um branco com uma negra. Portanto, meus filhos carregam os três sangues, e nem por isso deixamos de passar fome, ainda que sirvamos a mesa dos senhores governantes. Por esta razão, oh! nobre Dom José do Vale, senhor dos mares, rios, igarapés e igapós, é que entendemos a sua palavra quando pedis que nos unamos em torno de um mesmo sofrimento e partamos para a conquista do ideal, que é a eliminação deste sofrimento. – e virando-se para a multidão que o cerca diz:
– Somos todos ingratos pois, enquanto o grande cacique Cabeleira e seus guerreiros são perseguidos por tomar mantimentos dos dominantes para nos prover, nós, levianamente, vamos tal filhotes de pássaros no ninho, engolindo a comida sem nos preocupar em esboçar os nossos próprios vôos, para que possamos caçar também, deleteriamente atrofiando nossas asas e espírito de rapina. Dizei, pois oh! nobre boto Tucuxi, a quem o povo chama de Cabeleira, como devemos proceder.
Cabeleira atenua seu semblante e diz:
– Alguém discorda das palavras de André Potí?
Um silêncio se faz ouvir. Cabeleira dirige o olhar para o cafuzo e diz:
– Sois um líder, e nenhuma comunidade pode subsistir sem um líder. Existem somente dois grupos no mundo: os dominantes e os dominados. Cabe àqueles que, por uma contingência qualquer, foram levados à condição de dominados, promover resistência à continuidade desta condição. Os dominantes só detêm o poder mediante três formas básicas: fartura de mantimentos, organização social e milícia protetora. Ora, a fartura vós podeis conseguir pilhando-os, pois sois vós que a produzem para os dominantes. A milícia dos dominantes só questiona, prende e mata o dominado, jamais pune os dominantes pois vive a soldo deles. Vós também tendes homens fortes e podeis preparar a vossa própria milícia, para defender-vos. Resta, pois, a organização social. Esta deverá ser conseguida mediante acerto entre vós mesmos, através de normas e leis criadas de acordo com a realidade de vida a que foram levados, objetivando o bem estar individual e coletivo. O bem estar individual jamais poderá sobrepujar o bem estar coletivo. Isto significa que o interesse de uma pessoa não pode ser mais importante que o interesse da comunidade. Esta, por sua vez, deve periodicamente promover a revisão de conceitos, alternando suas leis em face da evolução social.
Estas leis e normas devem ser aplicadas a todos indistintamente e até mesmo àqueles que as criam e aplicam, pois desta forma, não pairarão suspeitas e conseqüentes desobediências à lei. Quando as leis são injustas e promovem a defesa somente dos interesses dos dominantes, devem ser desobedecidas coletivamente, para que assim por intimidação, sejam revistas. Achai dentre vós aqueles que têm conhecimento da leitura e da escrita. Consegui nas casas dos dominantes e nos mosteiros, os livros e escritas importantes usados na educação de seus filhos e educai os vossos filhos vós mesmos. Em pouco tempo estareis em condições de igualdade com os dominantes e desta forma, sereis respeitados e suas leis prevalecerão ante as leis dos dominantes e, então, podereis ser uma nação dentro de uma nação, um Estado dentro de um Estado. Vós estareis protegidos pois a milícia deles terá que, para voltar a dominar-vos, enfrentar a vossa milícia, que lutará por ideais e não por soldo. Reuni-vos e logo elegei seus líderes, consoante a capacidade de cada um. Após, deveis partir em direção aos entrepostos e fazendas e tomar parte do que, por direito, vos pertence. Não lhes tomem ouro, adornos, peças de vestuário fino, tampouco aguardente, pois disto vós não precisais, e é isso que leva à corrupção. Lembrai-vos que a milícia dos dominantes pode facilmente enfrentar meia dúzia de vós, mas jamais poderá enfrentar todos de uma só vez. Se todos os aflitos e dominados soubessem que os que os afligem e dominam jamais esperam uma reação e, face a isto, acomodam-se de maneira tal que, ante uma reação, se assustam e se apavoram ao ponto de fugirem, não existiriam aflitos e dominados por muito tempo. Eis, pois, o que tinha a vos dizer.
Cabeleira cala-se e aguarda a resposta da multidão, que não demora:
– O que estamos esperando? – pergunta o cafuzo André Potí – É agora ou nunca.
– Vamos à luta! – bradam outros homens.
– Sim, vamos à luta também por nossos filhos e nossos homens! – diz Jacira, mulher de André Potí.
Todos são unânimes em concordar com a forma encontrada para acabar com a miséria e o sofrimento em que vivem.
É final de tarde, quando Jacira, representando as demais mulheres da comunidade, concita todos à iniciativa esperada por Cabeleira. Este, vendo que todos se retiram discutindo as normas que a comunidade adotaria e as formas de ataque e defesa, chama André Potí e diz:
– André, não te esquece de hastear uma bandeira, pois ela não é apenas um símbolo. Ela expressa a origem, a razão e os objetivos de um povo irmanado. Ela nasce com o povo durante toda sua existência, serve para lembrá-los dos propósitos de sua constituição.
O sol se põe na linha do chapadão, tendo acima douradas nuvens que lhe coroam com um lindo arco-íris. Acima deste já se vê a primeira estrela vespertina destacando-se no céu azul escuro. André olha demoradamente aquele cenário, enquanto Cabeleira, com um leve sorriso nos lábios, observa a atitude daquele legítimo pernambucano. André se volta para Cabeleira e diz:
– Oh! grande mestre Cabeleira, a nossa bandeira terá o sol da esperança, a estrela da vida e o arco-íris da aliança entre irmãos.
Cabeleira alcança dentro da camisa uma cruz feita de dois pedaços de vermelho pau-brasil e diz:
– Encontrei este símbolo cristão nas mãos de um escravo, que jazia morto na senzala de uma fazenda que invadi com minhas tropas. Dizem os padres, que o Deus dos brancos deu seu próprio filho para que fosse morto e cravado numa cruz como esta, para que todos aqueles que nele crêem tenham a vida eterna.
Eis que vós sofrestes e outros morreram por acreditar numa vida melhor, assim gostaria que aos símbolos da esperança, da vida e da aliança, fosse acrescentado o símbolo do sofrimento do homem por amor ao homem e da fé entre irmãos, representada por esta cruz, que tirei das mãos de um negro, que talvez tenha descoberto na hora da morte que Deus não tem cor e seu filho optou pelos pobres e oprimidos.
– Assim faremos, oh! Cabeleira. A nossa bandeira terá o sol, o arco-íris, a estrela, o céu azul e a vermelha cruz que nos dá, incrustada no branco da paz que nunca deverá ser desprezada.
Cabeleira entrega a cruz a André Potí que, erguendo-a, brada a todos:
– Pernambucanos, a nossa bandeira contém a razão, a origem e os objetos do nosso povo e no amor fraterno representado por esta cruz, a certeza de que jamais seremos derrotados e somente assim, poderemos viver em paz.
Todos, entusiasmados, cercam André Potí e, colocando-o nos ombros, carregam-no com a cruz erguida nas mãos. A alegria é tanta que nem notam quando Cabeleira, juntamente com seus guerreiros e Anna Ferro, se retira, deixando nas margens do rio os mantimentos que trouxeram pela última vez. Os membros do grupo de André Potí recolhem os mantimentos e acompanham seu líder.
Cabeleira observa aquele início de um novo conceito de sociedade e união, sabendo de antemão que independentemente de ter criado a bandeira que seria a imagem definitiva do futuro Estado de Pernambuco, também ajudara a criar um sistema de defesa que chamar-se-ia "favela", um sistema de comunidade que enfrentaria as elites que dominariam as grandes cidades. O conceito de Quilombo ou Favela, comunidades que habitam promontórios, seria sempre uma defesa para seus habitantes, os quais, poderiam ver a chegada das milícias repressivas, antes que as mesmas os pudessem ver. Um sistema altamente válido, desde que regido pelas leis que acabaram de ser formuladas.
Cabeleira sabia que as elites eram estúpidas demais para preverem o futuro e por conseguinte, desprezariam os servos, como desprezaram na velha Europa. Esta omissão criaria os guetos que no século XX e XXI, passariam a dominar os miolos e as circunvizinhanças das capitais do que seria a República do Brasil. Estava criado o Estado dentro de outro Estado, a sociedade alternativa, o domínio dos socialmente excluídos - As FAVELAS. Restava saber, se estes redutos resistiriam às infiltrações das mazelas sociais da classe dominante que geram aquele perverso triângulo sádico comercial-amoroso entre elite, plebe e marginalidade. Só o tempo diria e provaria !  Disse e Provou !

Nos Estados Unidos, para ser um negro, basta ter apenas 10% de ascendência africana. Mesmo sendo louro com olhos azuis. No Brasil o conceito racial é apenas visual. Cabelo e pele definem a ancestralidade. A miséria não escolhe cor, credo ou ideologia. A miséria escolhe condição social não importa a cor ou origem do cidadão. Importa a sua condição social. Se na referência de residência constar “Associação de Moradores”, já está declarado que ele é um favelado.  Aí ele é discriminado. Só que, as autoridades governantes se esquecem que naquela favela moram, negros, brancos, índios, mestiços totais, nordestinos e muitos descendentes de colonos europeus emigrados.

É mais fácil para o governo brasileiro criar a cota de inclusão universitária e com isto, estabelecer e declarar a segregação no Brasil, do que aprimorar e dinamizar o ensino médio e secundário, (sob pena de haver uma intervenção no Estado), condição pétrea para acesso ao nível universitário. Estipular COTAS para o acesso de quaisquer Raças à Universidade, é DECLARAR OFICIAL A DICRIMINAÇÃO, SEGREGAÇÃO e o RACISMO NO BRASIL.

Eduardo Fonseca – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
Historiador-Antropólogo – Rio, 04 de maio 2007

 

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