SANGUE E BIFE

Aconteceu mais ou menos no ano de 1971, na pensão de Dona Ritoca, quartel general dos macaenses que iam estudar em Niterói. Estávamos no almoço, bifinhos de orelha sendo servidos por Toninho e Jorge Preguinho, quando a Dona Rita chegou e pediu que a escutássemos. Em seguida fez o seguinte apelo: que o Sr. Fidelis, marido dela, estava precisando de doadores de sangue por motivo de uma doença crônica que o obrigava a transfusões frequentes.
Eu, que nunca havia doado sangue, assombrado pela lenda de que “QUEM DOA SANGUE UMA VEZ, TEM QUE DOAR PARA SEMPRE” - essa descabida mentira que rondava, ou ronda ainda, a questão das doações. Mesmo assim, levantei a mão e disse que doaria.. Em seguida veio o Zé Sabiá, Travaco e mais uns dois. A doação seria realizada de manhã e, nessa noite em especial, o boteco do Sr. Nelson ficou em segundo plano. A saúde do Sr Fidelis era muito mais importante!
No outro dia, bem cedinho e com o time da Lara Vilela totalmente em jejum, inclusive de birita, fomos ao referido banco de sangue. Chegando lá foram feitos os procedimentos iniciais: perguntas, preencher fichas, e mais algumas coisas. Alguns já suavam frio nas mãos e, por ironia, os que mais proclamavam saúde! E ficamos aguardando o momento da doação.
Passado alguns minutos, apareceu um cara na porta e chamou por Travaco. Em tempo record, lá estava o moço de volta, meio tonto, ameaçando desmaiar e sem deixar uma só gota de sangue para o Sr Fidelis. O próximo! E lá foi o Zé Sabiá. Cara simples, vindo de Cambuci e que cumpriu muito bem o seu papel de doador de primeira viagem. Os outros dois também não doaram, um por hepatite e outro por cagaço! Chegou a minha vez e me saí tão bem quanto o Zé Sabiá. E finalmente o Sr. Fidelis iria receber a sua transfusão apesar da não doação de alguns.
Voltando a pensão e, lá pelo meio dia, chegou a hora do almoço. Novamente Toninho e Zé Preguinho com as suas devidas bandejas. Dona Maria e Dona Amélia na cozinha, com as panelas bufando em vapores, e o almoço tomando o seu ritmo normal. Chegando a minha hora de ser servido, tomei um susto! Toninho descarregou, bem no centro do arroz, na grande área do prato, um bife que me espantou: 2 dedos de grossura por um palmo de comprimento! Perguntei: Toninho, o que ouve? E um tanto de pessoas levantaram para olhar o meu prato, o Dunga não havia recebido bife de orelha! Porque? Imediatamente o Toninho respondeu: Dona Rita disse que você e o Zé Sabiá são as vacas leiteiras do seu Fidelis – e o bife será sempre deste tamanho! E, com categoria, fiz o gol de placa do dia com aquele bife tão carinhosamente feito pela dona Amélia. A ela e Dona Maria, o meu abraço fraterno, e que as duas sejam encontradas. Consigo me lembrar das vozes delas perfeitamente! O Sr. Fidelis, se não me engano, morreu do mal que complicava a sua vida. E os bifes parrudos, duraram nada mais que um mês, e pouco depois lá estava o prato de novo ornamentado por orelhas! E que saudade dessas orelhas e dos meus 19 anos!
Essa foi a minha primeira doação. Depois vieram outros hospitais em São Paulo, Macaé, Rio de Janeiro, e a eterna necessidade desse combustível vermelho nos bancos de sangue. Só quem foi salvo por uma dessas bolsas, ou algum outro derivado, sabe o real valor de um doador. Não sei se até hoje as pessoas ainda são assombradas por essa lenda da ESCRAVIDÃO DAS DOAÇÕES, mas doei muitas vezes. E tenho muito orgulho disso! E continuaria doando!
No ano de 2000 fui vitima de um câncer e precisei me submeter a tratamentos que me tornaram impossibilitado, para o resto da vida, às doações tanto de sangue quanto de medula óssea. Eu sonhava em um dia ser comunicado que havia sido escolhido para salvar a vida de alguém, uma figurinha carimbada no meio de tantos, e que precisam de mais tantos e tantos, para que mais vidas sejam salvas. O tratamento acabou com o meu sonho, mas salvou a minha vida!
Sonhe, pense no assunto, faça um bem salvando a vida de alguém!

Luiz Cláudio Bittencourt (Dunga) – 15/01/2015

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