Quando me preparava para escrever uma crônica o telefone tocou, era minha tia passando a conta da loja de materiais de construção referente a kitchenette que estou construindo em Unamar. Apesar de estar organizado para a empreitada, estou distante da obra, mas tenho o conforto e a confiança de ter tudo sobre o controle de minha tia, a quem carinhosamente me refiro como “a testemunha viva” da história, quando atravessamos a madrugada discutindo na varanda de sua casa. Isso me deixa tranquilo para refletir sobre um certo livro que devorei na juventude: “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano. Este livro era obrigatório para quem iniciava a vida política e era simpatizante do socialismo, tendo o sentimento anticolonialista e anticapitalista como pano de fundo para todas as mazelas do nosso continente.
Hugo Chávez, presidente da Venezuela, em seu primeiro encontro com Barack Obama, presidente dos EUA, presenteou-o com um exemplar do livro a que chamava de: “Um monumento na história latino-americana”.Mais de quarenta anos após o lançamento do livro, o escritor uruguayo Eduardo Galeano, renegou o livro afirmando que não estava preparado para tratar do tema e que o texto era ruim. Eu, imigrante literário, sei que quando uma obra é terminada e divulgada, deixa de pertencer a quem a concebeu, vai viver livre dentro de cada interpretação e se o criador quiser revisá-la, nada vai fazer com que a essência deixe de existir, está consumado e pronto. Assim, como no livro “A poesia de Brecht e a história”, de Leandro Konder, a quem cito aqui para prestar minhas homenagens e reverência.
Tomara que Zuenir Ventura nunca tenha uma dessas crises existenciais e arrependimentos que acometem algumas personalidades, fazendo com que reneguem aquilo o que pregavam. Mas podemos ficar tranqüilos porque o autor de “1968, o ano que não terminou” está muito lúcido com o passado e permite que viva em suas páginas personagens como o estudante Edson Luis assassinado no Calabouço pela ditadura militar; Carlos Lamarca, “o capitão da guerrilha”; o compositor de “Pra não dizer que não falei das flores” Geraldo Vandré e até a atriz italiana Claudia Cardinale, esquerdista, envolvida nas questões das mulheres e homossexuais.
Os mitos e as lendas costumam tomar formas nas reuniões em volta de uma fogueira, onde seus feitos são superlativados e ganham a proporção e o agigantamento dos deuses inventados. A mitologia latino-americana é muito rica, nos foram passadas pelos Incas, Maias e Astecas. A literatura não-ficção retrata um período da humanidade que não é lenda e nem mito, nem tem como ser alterada, é preciso ser estudada como o livro “Essa escola chamada vida”, uma delícia de leitura dos depoimentos que Frei Beto e Paulo Freire deram ao jornalista Ricardo Kotscho, o livro é pequeno, mas abriga o conhecimento, assim como a kitchenette, é pequena, mas do tamanho exato para abrigar “uma meia-dúzia” de pessoas boas de conversa.
Ricardo Mezavila
Escritor