JUSTIÇA DISTRIBUTIVA: PERSPECTIVAS E CONCEPÇÕES
Capítulo 13
A definição de uma concepção adequada da igualdade de recursos, por Ronald Dworkin
O ponto de partida de Ronald Dworkin para a definição de uma concepção adequada de igualdade de recursos é àquele que se refira a quaisquer recursos que os indivíduos possuam privadamente. A igualdade de poder político, inclusive, a igualdade de poder sobre recursos públicos ou privados, é, portanto, tratada como outra questão. Essa diferença é, evidentemente, arbitrária por muitos motivos. Do ponto de vista de qualquer teoria econômica avançada, o comando de um indivíduo sobre recursos públicos faz parte de seus recursos privados. Quem tem poder de influência sobre decisões públicas acerca da qualidade do ar que respira, por exemplo, é mais rico do que quem não tem. Assim, uma teoria geral da igualdade deve procurar um meio de integrar recursos privados e poder político.
Além disso, a propriedade privada não é uma relação singular, única, entre uma pessoa e um recurso material, mas uma relação multifacetada, da qual muitos aspectos precisam ser definidos politicamente. Portanto, a questão de qual divisão é uma divisão igual deve, até certo ponto, conter a questão de quais poderes se concede a alguém a quem se atribui um recurso, e isso, por sua vez, deve conter a questão adicional de seu direito de vetar quaisquer modificações nesses poderes que a política possa ameaçar. Quase sempre as dimensões gerais da propriedade são suficientemente bem entendidas, que a questão de qual modelo de propriedade privada constitui uma divisão igualitária dos recursos privados pode ser discutida independentemente dessas complicações.
Dworkin defende que uma divisão igualitária de recursos pressupõe alguma forma de mercado econômico, principalmente como uma ferramenta analítica, mas também, até certo ponto, como uma instituição política real.
A ideia de mercado econômico como mecanismo de atribuição de preços a uma grande variedade de bens e serviços deve estar no núcleo de qualquer elaboração teórica atraente da igualdade de recursos. Pode-se demonstrar de imediato a questão principal construindo-se um exercício bem simples de igualdade de recursos, deliberadamente artificial para abstraí-lo dos problemas que deveremos enfrentar depois. Suponhamos que um grupo de náufragos vai parar em uma ilha deserta que tem recursos em abundância e é desabitada, e que o grupo talvez só venha a ser resgatado depois de muitos anos. Esses imigrantes aceitam o princípio de que ninguém tem direito prévio a nenhum dos recursos, mas que devem ser divididos igualmente entre todos. (Ainda não percebemos, digamos, que talvez fosse sensato manter alguns recursos como propriedade comum de qualquer Estado que venham criar.) Também aceitam (pelo menos provisoriamente) o seguinte teste da divisão igualitária de recursos, que Dworkin chama de teste de cobiça. Nenhuma divisão de recursos será uma divisão igualitária se, depois de feita a divisão, qualquer imigrante preferir o quinhão de outrem a seu próprio quinhão.
Dworkin cita um exemplo. Agora admitamos que o grupo eleja um imigrante para fazer a divisão segundo esse princípio. É improvável que ele tenha êxito com a mera divisão física dos recursos da ilha em n porções idênticas de recursos. O número de cada tipo de recursos indivisíveis, como as vacas leiteiras, pode não ser um múltiplo exato de n, e mesmo no caso dos recursos divisíveis, como a terra arável, alguns terrenos seriam melhores que outros, e alguns seriam melhores para uma utilização do que para outra. No entanto, imaginemos que depois de muita tentativa, erro e zelo o responsável pela divisão conseguisse criar n porções de recursos, cada uma das quais diferente das outras, conseguisse atribuir uma a cada imigrante e ninguém cobiçasse a porção de ninguém.
Ainda assim, a distribuição poderia deixar de satisfazer aos imigrantes como distribuição igualitária por um motivo que o teste de cobiça não detecta.
A combinação dos recursos que compõem cada porção favorecerá algumas preferências em detrimento de outras, comparada às diversas combinações que se poderia compor. Isto é, seriam criados conjuntos diferentes de n porções por meio de tentativa e erro, cada um dos quais passaria no teste de cobiça, de modo que para cada conjunto que o responsável pela divisão escolher, alguém preferirá que ele tivesse escolhido outro conjunto, embora essa pessoa não preferisse outra porção daquele conjunto. Algumas trocas depois da distribuição inicial poderiam, é claro, melhorar a situação dessa pessoa. Mas é improvável que o deixem na situação em que estaria com o conjunto de porções que teria preferido, pois alguns outros começarão com a porção que preferem à porção que teriam recebido naquele conjunto, e assim não terão motivo para fazer trocas.
Assim, o responsável pela divisão precisa de um mecanismo que ataque dois focos distintos de arbitrariedade e possível injustiça. O teste de cobiça não se satisfaz com uma simples divisão mecânica de recursos. Se fosse possível descobrir uma divisão mais complexa que passasse no teste, talvez fosse possível descobrir muitas, e portanto a escolha entre elas seria arbitrária. O responsável pela divisão precisa de algum tipo de leilão ou de outro método de mercado para resolver esses problemas.
Seria questão de sorte, por exemplo, o número de pessoas que tivessem as mesmas preferências. Se suas preferências e aspirações fossem relativamente populares, essa circunstância poderia funcionar a seu favor no leilão, caso houvesse economias de escala na produção do que ele quisesse, ou contra ele, se o que quisesse fosse raro. Se os imigrantes tivessem decidido estabelecer um regime de igualdade de bem-estar, em vez de igualdade de recursos, então diversos exemplos de sorte e azar seriam compartilhados com os outros, pois a distribuição não se basearia em um leilão, no qual a sorte tem esse papel, mas em uma estratégia de eliminação das diferenças em qualquer concepção de bem-estar escolhida. A igualdade de recursos, porém, não oferece razão semelhante para corrigir as contingências que decidem se as preferências de alguém serão caras ou frustrantes.
Na igualdade de bem-estar, as pessoas devem decidir que tipo de vida querem, independentemente das informações pertinentes para decidir o quanto suas escolhas reduzirão ou aumentarão a capacidade de outros terem o que querem. Esse tipo de informação só se torna importante em um segundo nível, político, no qual os administradores coletam todas as escolhas feitas no primeiro nível para ver qual distribuição dará a cada uma dessas escolhas êxito igual em alguma concepção de bem-estar interpretada como a dimensão correta do êxito. Na igualdade de recursos, porém, as pessoas decidem que tipo de vida procurar munidas de um conjunto de informações sobre o custo real que suas escolhas impõem a outras pessoas e, consequentemente, ao estoque total de recursos que pode ser equitativamente utilizado por elas. As informações que sob a igualdade de bem-estar passam a um nível político independente são, sob a igualdade de recursos, levadas ao nível inicial da escolha individual. Os elementos da sorte no leilão acima descrito são, de fato, informações essenciais, informações adquiridas e usadas nesse processo de escolha.
Assim, os fatos contingentes da matéria-prima e da distribuição de gostos não servem de fundamento para alguém refutar a distribuição, considerando-a desigual. São, antes, um pano de fundo para determinar o que é, nessas circunstâncias, a igualdade de recursos. Na igualdade de recursos, nenhum teste para calcular o que a igualdade exige pode ser abstraído desses fatos e usado para averiguá-los. O leilão como mercado não é simplesmente um dispositivo ad hoc para resolver os problemas técnicos da igualdade de recursos, que surgem em exercícios bem simples. É uma forma institucionalizada do processo de descoberta e adaptação que está no núcleo da ética desse ideal. A igualdade de recursos supõe que os recursos dedicados à vida de cada pessoa devem ser iguais. Esse objetivo precisa de uma métrica. O leilão propõe o que o teste de cobiça de fato assume, isto é, que a verdadeira medida dos recursos sociais dedicados à vida de uma pessoa seja determinada indagando sobre a real importância desse recurso para os outros. O custo, avaliado desta forma, aparece na noção que cada pessoa tem do que é seu com justiça, e no juízo que cada um faz da vida que deve levar, dado aquele mesmo comando da justiça. Qualquer pessoa que insistir que a igualdade é violada por algum perfil particular de gostos iniciais deve, portanto, rejeitar a igualdade de recursos e recair na igualdade de bem-estar.
É claro que é supremo nesse argumento, e nessa conexão entre o mercado e a igualdade de recursos, que as pessoas entrem no mercado em igualdade de condições. O leilão da ilha deserta não teria evitado a cobiça, e não teria atrativo como solução do problema da divisão igualitária dos recursos, se os imigrantes tivessem lutado na ilha com quantias diferentes de dinheiro no bolso, os quais tinham a liberdade de usar no leilão, ou se alguém tivesse roubado conchas de outras pessoas. Não devemos perder de vista esse fato, tanto no argumento a seguir quanto em qualquer reflexão sobre a aplicação dele aos sistemas econômicos contemporâneos. Mas também não devemos perder de vista, em virtude de nosso desânimo devido às desigualdades desses sistemas, a importante ligação teórica entre o mercado e o conceito de igualdade de recursos.
Existem, evidentemente, outros tipos de objeções bem distintos ao uso de um leilão, mesmo que seja um leilão igualitário. Pode-se dizer, por exemplo, que a justiça do leilão supõe que as preferências levadas ao leilão ou formadas durante ele são autênticas – as verdadeiras preferências do agente, e não as preferências a ele impostas pelo próprio sistema econômico. Talvez qualquer tipo de leilão, no qual uma pessoa faz lances contra outra, imponha o pressuposto ilegítimo de que o que tem valor na vida é a propriedade individual sobre algo, e não as empreitadas mais cooperativas da comunidade ou de algum grupo dentro dela. Contudo, na medida em que essa objeção (em parte, misteriosa) tem pertinência aqui, ela é uma objeção contra a ideia da propriedade privada em um domínio abrangente de recursos, questão que é mais bem compreendida sob o título de igualdade política, e não uma objeção à afirmação de que algum tipo de mercado deve figurar em qualquer teoria satisfatória sobre o que é igualdade na propriedade privada.