JUSTIÇA DISTRIBUTIVA: PERSPECTIVAS E CONCEPÇÕES
Capítulo 10
Cargos públicos, segundo Michael Walzer
5ª parte
O profissionalismo e a insolência dos cargos, a contenção de cargo, o mundo da pequena burguesia e o clientelismo
O que torna tão importante a distribuição de cargos, consoante o entendimento de Michael Walzer, é que se distribui muito mais com o cargo (ou alguns cargos): renome e status, poder e prerrogativas, riqueza e conforto. O cargo é um bem predominante, que carrega outros consigo. A declaração de predomínio é “a insolência do cargo”, e, se descobríssemos um meio de controlar essa insolência, o exercício de cargos começaria a assumir suas devidas proporções.
O cargo é tanto uma função social quanto uma carreira pessoal. Requer o exercício de talentos e habilidades com determinado fim. O detentor do cargo ganha a vida com seu desempenho, mas sua primeira recompensa é o próprio desempenho, o trabalho para o qual se preparou, que provavelmente quer realizar, e que outras pessoas também querem realizar. O trabalho pode ser extenuante, complicado, cansativo, porém é uma grande satisfação. Também é satisfatório falar dele com os colegas, criar um jargão, ocultar dos leigos os segredos. O jargão proporciona mais prazer a quem trabalha em escritórios do que a quem trabalha em oficinas. O segredo fundamental, naturalmente, é que o trabalho poderia ser redistribuído com facilidade. Um grande número de pessoas também poderia realizá-lo, e desfrutar tanto os atuais detentores dos cargos.
O mecânico que conserta nosso carro sabe de coisas que não sabemos e que são, ademais, misteriosas para nós. Também o médico, que cuida do nosso corpo, e o advogado, que nos orienta no labirinto do direito. Mas, em princípio, podemos aprender o que eles sabem, outras pessoas a aprenderam; e ainda outras pessoas aprenderam um pouco a respeito. Mesmo por conta própria e com os conhecimentos de que dispomos, sabemos o suficiente para questionar os conselhos que recebemos dos especialistas que consultamos, e podemos nos instruir quando conversamos com os amigos e lemos um pouco a respeito. A distribuição dos conhecimentos socialmente úteis não é uma rede perfeita, mas não há abismos enormes. Ou, pelo contrário, a menos que sejam mantidos artificialmente, os abismos são preenchidos, por diversos tipos de pessoas com talentos e habilidades variadas, e vários conceitos de especialidades.
O profissionalismo é uma forma de manutenção artificial. É, ao mesmo tempo, muito mais que isso; é um código ético, um vínculo social, um padrão de regulamentação mútua e autodisciplina. Decerto, porém, a principal finalidade da organização profissional é transformar determinado grupo de homens (mais recentemente, de mulheres também). Esse é um esforço realizado pelos detentores de cargos em benefício próprio. Os motivos são, em parte, materiais; pretendem limitar-se em número para que possam exigir altos honorários e salários. Essa é a segunda recompensa do exercício de cargos. Porém há mais do que dinheiro em jogo quando grupos de detentores de cargos reivindicam status profissional. É o próprio status que está em jogo: a terceira recompensa. Os profissionais têm interesse em especificar a natureza de seu próprio desempenho, descartando tarefas que lhes pareçam estar aquém do nível de sua formação ou de seu diploma. Procuram um lugar na hierarquia e elevam seu desempenho no trabalho às alturas que esperam alcançar. Formam-se, então, novas profissões para preencher a hierarquia, cada grupo adicional procurando isolar alguma realização ou conjunto de realizações em que a competência possa ser certificada e, pelo menos até certo ponto, monopolizada. Mas é característica dessas novas profissões, como assinalou T. H. Marshall, que embora haja uma escada educacional que leva a elas, “não existe escada que leve para fora delas”. Só se podem alcançar as alturas adjacentes “por outro caminho, que parte de outro nível do sistema educacional”. Médicos e enfermeiras oferecem um exemplo útil de profissões intimamente relacionadas, mas com diplomas intransferíveis. O profissionalismo é, então, um modo de traçar limites.
Também é um modo de estabelecer relacionamentos de poder. Os profissionais exercem o poder na hierarquia e também em suas relações com os clientes. Em outras palavras, emitem ordens para os subordinados, mas só imperativos hipotéticos para os clientes. Se quiser curar-se, dizem, faça isto e aquilo. Porém, quanto maior a distância que conseguem estabelecer, maiores são os segredos sob seu comando e menos hipotéticos seus imperativos. Desdenhosos de nossa ignorância, simplesmente nos dão ordens. Existem, naturalmente, pessoas que resistem à tentação de passar dos conhecimentos abalizados para a conduta autoritária, mas a tentação e a oportunidade estão sempre presentes: esta é uma quarta recompensa do cargo.
A expansão dos cargos e a ascensão do profissionalismo caminham de mãos dadas, pois assim que resolvemos assegurar a nomeação de pessoas qualificadas, fazemos um convite à inflação de conhecimentos especializados. Esse é um ótimo motivo para deter a expansão e negar a universalidade do funcionalismo público, mas também é motivo para impor limites à supremacia do status social (e profissional) e à sua ampla conversibilidade. Queremos pessoas qualificadas nos cargos de burocratas, médicos, engenheiros, professores etc., mas não queremos que essas pessoas nos governem. Queremos descobrir meio de pagar a elas sem ter de tolerar sua insolência.
Mas quais são os deveres dessas pessoas? Cada uma das quatro recompensas dos cargos tem suas formas apropriadas e impróprias. Até certo ponto, elas são decididas politicamente – são o produto de argumentações ideológicas e interpretações em comum; e só se pode fazer questão que os detentores de cargos estabelecidos, membros desta ou daquela profissão, não tenham direitos exclusivos no processo decisório. Mas tem de ser possível sugerir algumas diretrizes gerais, oriundas da interpretação social do próprio cargo. A primeira recompensa é o prazer do exercício do cargo, e não há dúvidas de que os detentores de cargos qualificados têm o direito a todo prazer que puderem extrair dos serviços que prestam. Mas não têm o direito de adaptar o desempenho para aumentar o prazer (ou a renda, o status ou o poder) à custa das outras pessoas. Servem a finalidades comunitárias e, portanto, seu trabalho está sujeito ao controle dos cidadãos da comunidade. Exercemos esse controle sempre que especificamos qualificações para determinado cargo ou os padrões de conduta competente ou ética. Não existe motivo, a priori, então, para consentir qualquer segregação específica de técnicas ou habilidades especializadas, pois é sempre possível que a comunidade seja mais bem-servida exigindo que os detentores de cargos movam-se entre as linhas de especialização existentes.
O desempenho convencional quase sempre deixa de cumprir a finalidade do cargo; pode até representar uma conspiração contra essa finalidade. O profissional deve, portanto, curvar-se a suas tarefas adequadas.
E deve, então, receber sua devida compensação financeira. Mas de que tamanho deve ser a recompensa? Não temos modo fácil de decidir. O mercado de trabalho não funciona bem nesse aspecto, principalmente devido à soberania dos cargos, mas também em razão do caráter social do trabalho que as autoridades realizam e da necessidade de diplomas e licenças. Quem ocupa altos cargos, em especial, tem conseguido limitar o número de candidatos, dentro os quais são escolhidos seus colegas e sucessores, e, assim, elevar sua renda coletiva. Não há dúvida de que é realmente limitado o número de candidatos a certos cargos, mesmo que se exija apenas um conjunto limitado de qualificações. Mas está claro que não é só o mercado nem o mercado livre que está em ação para determinar os salários. Às vezes os detentores de cargos simplesmente nos extorquem. Temos, então, o direito de resistir – e procurar uma contrapartida política para o poder dos profissionais.
Às vezes se argumenta que os cargos, em especial os profissionais, devem ser bem pagos para que seus ocupantes possam “cultivar a vida do intelecto”. Mas a vida do intelecto é, em comparação com outras vidas, relativamente barata; e seja como for, é raro que se gastem os salários dos cargos em suas exigências.
A honra é uma recompensa que se deve avaliar por desempenho, e não por posto; só quando é assim avaliada podemos falar dela com propriedade como algo que as pessoas merecem. Quando merecida, é a mais elevada recompensa do cargo. Realizam bem o serviço, e ser reconhecido por isso: isso é, com certeza, o que todos mais querem no trabalho. Em comparação, fazer questão da honra sem relação com o desempenho é uma das formas mais comuns de insolência oficial.
O poder dos detentores de cargos é mais difícil de limitar. O cargo é um motivo importante para o exercício da autoridade, mas não é atraente estar sob o comando de profissionais burocratas, mesmo quando são profissionais e burocratas qualificados. Recorrerão à autoridade dos cargos sempre que puderem ampliar o poder para além do que suas qualificações lhes garantem ou suas funções requerem. Por isso é tão importante que as pessoas sujeitas à autoridade de detentores de cargos tenham voz na definição da natureza da função. Essa definição é informal, em parte, elaborada nos confrontos diários entre os detentores de cargos e os clientes. Um dos principais objetivos da educação pública deve ser preparar as pessoas para esses confrontos, tornar os cidadãos mais conscienciosos e os cargos menos misteriosos. Mas também é necessário agir de outras maneiras para preencher as lacunas da distribuição de conhecimentos e poder: opor-se à segregação de especialidades e especialistas, impor modelos mais cooperativos de trabalho e complementar a auto-regulamentação dos profissionais com algum tipo de supervisão comunitária (comitês de análise crítica, por exemplo). Este último é mais importante e, ainda mais, localmente, onde a participação popular é mais real. Neste ponto, pode-se generalizar a argumentação sobre os burocratas do bem-estar social para os detentores de cargos: só podem trabalhar nem se não trabalharem sozinhos. De fato, não têm o direito de fazê-lo sozinhos, apesar do fato de sua competência ter sido diplomada pelas autoridades constituídas que, provavelmente, representam o conjunto de clientes e consumidores, pois estes têm interesses mais imediatos, e suas avaliações coletivas do desempenho dos detentores de cargos são fundamentais para o trabalho em andamento. A questão não é sujeitar os “especialistas” aos “vermelhos”, mas aos detentores de cargos aos cidadãos. Só então estará claro para todos que o cargo é uma forma de serviço, e não outra oportunidade para a tirania.
A contenção de cargo
Para Walzer, há dois motivos para a expansão dos cargos. O primeiro tem relação com o controle político de atividades e empregos essenciais para o bem-estar da comunidade; o segundo, com a “igualdade justa de oportunidades”. Ambos são bons motivos, mas, nem separados nem juntos, requerem um funcionalismo público universal. O que requerem é a eliminação ou a redução de critérios particulares (individuais ou grupais) com relação a certos tipos de empregos. A política democrática assume o lugar dos critérios particulares. Seu mandato pode ser exercido de maneira direta pelos burocratas ou juízes, ou indireta, pelas comissões de cidadãos que agem segundo as leis definidas publicamente; mas a referência fundamental é à comunidade política como um todo, e o poder está efetivamente nas mãos do Estado. Qualquer sistema que se aproxime de um funcionalismo público universal está fadado a ter uma operação centralizada. A tendência inevitável de todas as tentativas de alcançar o controle político e a igualdade de oportunidades reforça e aprimora o poder centralizado. Assim como em outras áreas da vida social, a tentativa de derrotar a tirania faz surgir o espectro de novas tiranias.
Nem todos os empregos precisam transformar-se em cargo; os cargos pertencem às pessoas que são atendidas por eles: os cargos eletivos e os da administração estatal a todo o povo; os cargos profissionais e empresariais aos clientes e aos consumidores, que só podem ser politicamente representados por intermédio do aparato estatal.
O mundo da pequena burguesia
Walzer ressalta que a economia pequeno-burguesa é um mundo personalista, onde são constantes a troca de favores e a distribuição de empregos a amigos e parentes. O nepotismo não é apenas aprovado; sempre parece ser exigência moral. Dentro dos limites dessa moralidade, os critérios reinam com supremacia: os critérios de proprietários, de famílias, de sindicatos unidos, chefes políticos locais etc.
É preciso prestar atenção nas formas de vida pequeno-burguesa, nas quais os empregos estão localizados dentro de determinado tipo de rede social: proximidade, rotinas diárias, contatos locais, serviços pessoais, cooperação familiar. Não é por acaso que uma série de grupo de imigrantes recém-chegados conseguem entrar nesse mundo econômico e prosperar, pois podem ajudar uns aos outros de maneiras que deixam de ser possíveis quando entram no mundo impessoal dos cargos.
Clientelismo
Existem muitos empregos no governo, especialmente locais, que não requerem grandes habilidades e operam em alta rotatividade. Esses são cargos por definição, pois só podem ser distribuídos pelas autoridades constituídas. Um sorteio entre quem possui as qualificações mínimas pareceria um método óbvio de distribuição. É assim que preenchemos as vagas de júris, por exemplo; e decerto também seria um modo apropriado para preencher vagas em conselhos, comissões, juntas avaliadoras, diversos tipos de empregos em fóruns etc. Contanto que não sejam cargos para os quais seja preciso passar meses ou anos estudando, e contanto que os detentores experientes desses cargos não sejam arbitrariamente demitidos, ninguém recebe tratamento injusto com essa transformação. E não é implausível afirmar que, para certos tipos de trabalho no governo, a própria atividade política é uma qualificação importante.
A atividade política bem-sucedida, segundo Walzer, é a qualificação fundamental para os cargos que denominamos “representativos” com base em nada semelhante à meritocracia – ou, pelo menos, os méritos em questão não são do tipo que se poderia examinar por meio de um sistema de provas. Neste caso, o processo distributivo é totalmente politizado e, embora o eleitor ideal devesse, talvez, comportar-se como membro de uma comissão de seleção, o conjunto de eleitores não sofre as mesmas restrições que as comissões de seleção. Podemos traçar uma escala de liberdade de escolha crescente dos júris, passando pelas comissões, até o eleitorado. E, então, as autoridades eleitas têm permissão, o que é bem plausível, de convidar para cargos alguns de seus correligionários, exercendo a mesma liberdade de escolha que foi exercida quando eles mesmos foram escolhidos.
O sistema de clientelismo gera lealdade, compromisso e participação, e pode muito bem ser característica necessárias de qualquer democracia genuinamente localista ou descentralizada. O funcionalismo público universal talvez seja tão incompatível com a democracia municipal quanto com a democracia das fábricas. Ou o governo local, assim como as pequenas empresas, funciona melhor quando há espaço para a amizade e a troca de favores. Novamente é uma questão, em parte, de escala e também em parte de caráter dos cargos em jogo. Existe uma série de atividades para as quais a liberdade de escolha partidária parece, se não completamente adequada, pelo menos não inadequada. Pode-se até transformar em questão de consenso e expectativa que certos empregos façam “rodízio” entre ativistas políticos, dependendo de seu êxito ou fracasso no dia das eleições.
Conclui Michael Walzer que a igualdade de oportunidades é um modelo de distribuição de alguns empregos, não todos. É mais apropriada em sistemas centralizados, profissionalizados e burocráticos, e sua instituição costuma gerar tais sistemas. Nesse caso, o controle comunitário e as qualificações individuais são necessários, e o princípio fundamental é a “justiça”. E devemos acatar a lei das maiorias e, depois, das autoridades estatais, e a autoridade de pessoas qualificadas. Mas existem empregos desejáveis que se encontram fora desses sistemas, que são justamente (ou não injustamente) controlados por pessoas ou grupos, e que não precisam ser distribuídos “com justiça”. A existência de tais empregos abre caminho para um tipo de êxito para o qual ninguém precisa de fato estar qualificado, não pode estar qualificado – e, portanto, limita a autoridade dos qualificados. Existem áreas da vida social e econômica em que seu mandato não tem efeito. Os limites exatos entre essas áreas serão sempre problemáticos, mas sua realidade não é.
Nós os separamos do funcionalismo público, porque o modelo de relacionamentos humanos neles contidos é melhor do que seria se não estivessem separados – isto é, melhor em razão de determinadas interpretações do que são bons relacionamentos humanos.
Isto é, então, igualdade complexa na esfera dos cargos. Exige abertura da carreira para os talentos. Para que cada pessoa possa planejar a própria vida, projetar carreiras para si mesmos, não há como evitar a concorrência por cargos com todos os seus triunfos e derrotas. Mas é possível atenuar o frenesi da concorrência diminuindo os cacifes.