Justiça Distributiva: Perspectivas e Concepções
Capítulo IX
A educação como esfera da justiça, em defesa do pluralismo e da igualdade segundo Michael Walzer
Apresentação
Michael Walzer (nascido em 3 de março de 1935) é um proeminente filósofo político e intelectual público . Professor emérito no Instituto de Estudos Avançados (IAS) em Princeton, Nova Jersey , ele é co-editor da “Dissidência” , uma revista intelectual que ele tem sido associada desde seus anos como estudante de graduação na Universidade de Brandeis.
Considerado, dentro da perspectiva da justiça distributiva, como uma “comunitarista”, Michael Walzer é daqueles que discordam da visão individualista e atomista do método contratualista, advogando a inserção do indivíduo no coletivo (comunidade) e a superioridade da moral e da ética sobre a mera justiça procedimental. Os “comunitaristas” recorrem especialmente as ideias clássicas de Aristóteles e de Hegel.
A importância das escolas na visão de Michael Walzer
Toda sociedade humana educa suas crianças, seus novos e futuros membros. A educação expressa o que talvez seja nosso mais profundo desejo: continuar, prosseguir, persistir perante o tempo. É um programa de sobrevivência social.
Conforme salienta Michael Walzer, escolas, professores e ideias geram e preenchem um espaço intermediário. Oferecem um contexto, não o único, porém o mais importante, para o desenvolvimento do entendimento crítico e para a produção, bem como a reprodução, de críticos sociais. O mais importante é que as escolas, os professores e as ideias constituem um novo conjunto de bens sociais, concebido independentemente de outros bens e que exige, por sua vez, um conjunto independente de processos distributivos.
Os cargos letivos, as vagas para alunos, a autoridade nas escolas, as notas e promoções, os diversos, e os padrões distributivos não podem ser mero reflexo dos padrões da ordem econômica e política, pois os bens em questão são diferentes. Naturalmente, a educação sempre dá apoio a determinado tipo de forma de vida adulta, e o apelo da escola à sociedade, do conceito de justiça educacional para o conceito de justiça social, é sempre legítimo. Mas ao fazer esse apelo, devemos também atentar para o caráter especial da escola, o relacionamento entre professores e alunos, a disciplina intelectual geral. A autonomia relativa é uma função que é o processo educacional e dos bens sociais que envolve assim que deia de ser direta e imediata.
A justiça não se relaciona só com os resultados, mas também com a vivência da educação. As escolas preenchem um espaço intermediário entre a família e a sociedade, e também preenchem um período de tempo intermediário entre a infância e a maturidade.
Educação fundamental: autonomia e igualdade
Segundo Wlazer, é possível dividir, para fins educativos, de inúmeras maneiras a massa de crianças. A divisão mais simples e comum, da qual a maioria dos programas educativos até bem recentemente eram variações, tem a seguinte forma: educação mediada para poucos, educação direta para muitos. É desse modo que os povos se distinguiam historicamente em seus papeis convencionais – governantes e governados, sacerdotes e leigos, classes altas e classes plebeias.
Escolas especializadas
Na perspectiva de Walzer, a educação democrática começa com a igualdade simples: trabalho comunitário para fins comuns. A educação é distribuída com igualdade para todas as crianças a dominar o mesmo cabedal de conhecimentos. Isso não significa que cada criança seja tratada exatamente da mesma maneira que todas as outras. Distribuem-se elogios com abundância nas escolas japonesas, por exemplo, mas não igualmente distribuídos a todas as crianças. Algumas crianças sempre exercem o papel de alunas–professoras, e outras são sempre alunas. As crianças atrasadas e as apáticas talvez recebam uma atenção desproporcional dos professores. O que as mantém reunidas é a escola forte e o núcleo curricular.
Mas a igualdade simples torna-se completamente inadequada depois que o núcleo foi apreendido e foi alcançado a finalidade comum. Depois disso, é preciso adaptar a educação aos interesses e às capacidades de cada aluno. E as próprias escolas precisam ser receptivas aos requisitos específicos do mundo do mercado de trabalho. Bernard Shaw afirmava que, neste ponto, deve-se simplesmente dispensar as escolas – precisamente porque não podem mais estabelecer metas comuns para todos os alunos. Ele identifica a educação escolar com a igualdade simples:
Depois que a criança aprende o credo social e o catecismo, e saber ler, escrever, contar e usar as mãos: em resumo, quando está qualificada para viver nas cidades modernas e prestar serviços úteis comuns, é bom deixá-la descobrir sozinha o que lhe será melhor na direção de formação superior. Se for um Newton ou um Shakespeare, aprenderá cálculo ou arte do teatro sem que lhe sejam empurrados goela abaixo: só é necessário que tenha acesso aos livros, aos professores e aos teatros. Se não quiser cultura superior, deve-se deixar seus intelecto em paz, porque ele saber o que lhe convém.
Jamais haverá uma comunidade política de cidadãos iguais se a escola for o único caminho para a responsabilidade adulta. Para algumas crianças, além de certa idade, a escola é uma espécie de prisão (mas não fizeram nada para merecer a prisão!), tolerada em razão de exigências jurídicas ou em troca de um diploma. Com certeza se deveria libertar essas crianças e ajudá-las a aprender o ofício que queiram exercer. A cidadania igualitária requer formação fundamental em comum – sua duração exata é questão de debate político; mas não requer uma carreira educacional uniforme.
Se a comunidade financia a educação geral de alguns cidadãos, como fazemos hoje pelos universitários, então precisa fazê-lo por quaisquer deles que estejam interessados – não só em faculdades, mas também, como declarou Tawney, “em meio à rotina de sua vida profissional”. Tawney, que dedicou muitos anos à Workers Educacional Association, está certíssimo ao afirmar com veemência que uma educação superior desse tipo não deveria estar disponível somente com base numa “carreira de frequência contínua à escola dos cinco aos dezoito anos”. Pode-se imaginar uma grande universidade de escolas e cursos, atendendo a aluno de diversas idades e formações educacionais, em funcionamento nacional e local, vinculadas a sindicatos, associações profissionais, fábricas, museus, asilos para idosos etc. Nessas situações, é claro, a escola se dilui em outras maneiras, menos formais de ensino e aprendizado. A “comunidade fechada” perde a realidade física, torna-se uma metáfora de distância crítica. Mas, à medida que distribuímos vagas nas escolas (a “escola da vida” está sempre com as matrículas abertas), acho que não devíamos desistir da ideia da clausura nem conceder mais distância do que precisamos. A única extensão da educação fundamental apropriada à democracia é a que oferece oportunidades reais, verdadeira liberdade intelectual, e não só para alguns alunos convencionalmente reunidos, mas para todos os outros também.
Assim como para os monges e os eruditos, também para os cidadãos comuns: é bom poder estudar indefinidamente, sem fins profissionais, em nome do que Tawney chama de “conduta de vida razoável e humana”; mas o único ponto fundamental para a teoria da justiça é que esse tipo de estudo não possa ser privilégio exclusivo de poucas pessoas, escolhidas pelas autoridades do Estado por meio de um sistema de exames. Para estudar a “conduta humana da vida” ninguém precisa de qualificações.
Quanto mais bem-sucedida for a educação fundamental, mas competente será o conjunto de futuros cidadãos, mais intensa será a concorrência por vagas no sistema educacional superior maior será a frustração dos que não forem classificados. É provável, então, que as elites exijam seleção cada vez mais cedo, para que o dever de casa dos não-escolhidos se transforme num treinamento em passividade e resignação. Os professores das escolas resistirão a essa exigência, bem como os alunos – ou melhor, os pais dos alunos resistirão, na medida que forem politicamente alertas e capazes. De fato, parece que a igualdade de avaliação exigiria tal resistência, pois as crianças têm ritmos diferentes de aprendizado e florescem intelectualmente em idades diversas. Qualquer processo seletivo único será decerto injusto para alguns alunos; também será injusto para os jovens que pararam de estudar para trabalhar. Assim, deve haver normas de reavaliação e, o que é mais importante, de ingresso tanto lateral quanto vertical nas escolas especializadas.
Supondo-se um número limitado de vagas, porém, essas normas só multiplicarão o número de candidatos frustrados. Não há como evitá-lo, mas só será um desastre moral se a concorrência não for tanto por vagas na escola e oportunidades educacionais quanto pelo status, pelo poder e pela riqueza que é comum se associarem à situação profissional. As escolas, contudo, não precisam ter envolvimento com essa trindade de vantagens. Nenhuma característica do processo educacional requer a ligação entre a educação superior e a posição na hierarquia. Nem existe motivo para achar que a maioria dos alunos competentes abriria mão da formação se tal vínculo se rompesse e os futuros detentores de cargos pagassem, digamos, “salários de proletários”. Alguns alunos, decerto, serão melhores engenheiros, cirurgiões, físicos nucleares etc. do que os colegas. Continua sendo tarefa das escolas especializadas descobrir esses alunos, dar-lhes certa noção do que podem fazer e encaminhá-los. A formação especializada é, obrigatoriamente, um monopólio dos talentosos ou, pelo menos, dos alunos mais capazes, em determinado momento, de por em prática esses talentos. Mas é um monopólio legítimo. As escolas não conseguem evitar a diferenciação entre os alunos, promovendo alguns e recusando outros; mas as diferenças que descobrem e impõem devem ser intrínsecas ao trabalho, e não ao status do trabalho. Devem ter relação com empreendimentos, e não com as recompensas econômicas e políticas dos empreendimentos; devem voltar-se para dentro, para questões de elogio e orgulho dentro das escolas e, depois, para dentro da profissão, mas de posição incerta no mundo. De posição incerta: pois as realizações ainda podem ter consigo, com um pouco de sorte, não riqueza e poder, mas autoridade e prestígio.
Associação e segregação
A educação fundamental é matéria de coerção. Nos níveis mais baixos, pelo menos, as escolas são instituições que é preciso obrigar as crianças a frequentar:
O escolar chorão com sua pasta e a reluzente cara matinal que, semelhante a um caracol, se arrasta de má vontade para a escola
é uma imagem comum em muitas culturas. Na época de Shakespeare, a vontade que levava a criança de má vontade à escola era a dos pais; o Estado não exigia frequência. A educação das crianças dependia da riqueza, da ambição e da cultura dos pais. Isso nos parece uma dependência errônea: primeiro, porque toda a comunidade se interessa pela educação; e em segundo lugar, porque se presume que as próprias crianças têm interesse, embora talvez ainda não o entendam. Ambos esses interesses contemplam o futuro, o que a criança será e o trabalho que fará, e não, ou não simplesmente, o que seus pais são, ou sua posição na sociedade, ou a riqueza que possuem.
A frequência à escola é compulsória – e, em razão dessa obrigatoriedade, não são apenas vagas que são distribuídas para as crianças, mas as próprias crianças são distribuídas entre as vagas disponíveis. As escolas públicas não têm existência a priori; devem ser constituídas, e seus alunos a elas atribuídas por decisão política. Precisamos, então, de um princípio de associação. Quem vai para a escola com quem? É uma questão distributiva em dois sentidos. Em primeiro lugar, porque o teor do currículo varia com o caráter dos alunos. Se as crianças forem associadas com futuros cidadãos, aprenderão a história e as leis do país. Se forem associadas como crentes desta ou daquela religião, estudarão o rito e a teologia. Se forem associadas como futuros trabalhadores, receberão formação “profissionalizante”; como futuros profissionais, uma educação “acadêmica”. Quando se reúnem alunos inteligentes, recebem um nível de ensino; alunos fracos, outro nível. Poderíamos enumerar exemplos indefinidamente de acordo com o conjunto predominante de diferenças humanas e distinções sociais. Mesmo se presumíssemos que as crianças sejam associadas como cidadãos e recebam uma formação comum, continua sendo verdadeiro que não podem estudar juntas, precisam ser divididas em escolas e turmas. E o modo de fazê-lo continua sendo questão distributiva porque, em segundo lugar, as crianças são os recursos umas das outras: colegas e rivais, desafiando umas às outras, ajudando umas às outras, formando o que talvez venham a ser as amizades essenciais da vida adulta. O teor do currículo talvez seja menos importante do que o ambiente humano dentro do qual é ensinado. Não é de surpreender, então, que a associação e a segregação sejam as questões mais contestadas nas esferas da educação. Os pais se interessam muito mais pelos colegas de escola do que pelos livros didáticos dos filhos.
O problema distributivo fundamental da esfera da educação é fornecer uma educação em comum sem destruir o que nelas há de incomum, sua particularidade social e também genética. Não existe uma solução única. Só se pode determinar o caráter da instituição mediadora com relação às forças sociais entre as quais serve de mediadora. Sempre se deve atingir um equilíbrio, que varia segundo a época e o lugar.
Separação em turmas segundo a capacidade
Não haveria possibilidade de se organizar uma sociedade democrática sem reunir pessoas de todos os graus e tipos de talentos e falta de talento – não só nas cidades, mas também em partidos e movimentos (para não falar das burocracias e dos exércitos). O fato de que as pessoas costumam casar-se com pessoas do mesmo nível intelectual é de interesse secundário, pois a educação pública numa sociedade democrática é um treinamento apenas incidental para o casamento ou para a vida privada em geral. Se não houvesse vida pública, ou se a política democrática fosse radicalmente desvalorizada, seria mais fácil defender a separação por talentos.
Há usos mais limitados da segregação, porém, que são mais permissíveis, mesmo entre futuros cidadãos. Existem motivos didáticos para separar crianças que tenham dificuldades especiais em matemática, por exemplo, ou numa língua estrangeira. Mas não há motivos didáticos nem sociais para tornar generalizadas tais distinções, criando um sistema de duas classes dentro das escolas, ou criando tipos radicalmente distintos de escolas para tipos diversos de alunos. Quando se faz isso e, principalmente, logo no início do processo educacional, não é a associação dos cidadãos que se está antecipando, mas o sistema de classes mais ou menos em sua forma presente. A reunião de crianças acontece principalmente na socialização pré-escolar e no lar. É a rejeição do isolamento da escola.
As escolas de guetos ou favelas preparam as crianças, que se preparam umas às outras, para a vida no gueto e na favela. A clausura nunca é suficientemente forte para protegê-las de si mesmas e do ambiente imediato. São rotuladas, e aprendem a rotular-se umas às outras, por localização social. Sempre se diz que a única maneira de mudar essa situação é mudar de local, separar as escolas dos bairros. Pode-se fazer isso transferindo as crianças dos guetos e das favelas para fora de suas escolas locais ou trazendo outras crianças para essas escolas. De qualquer maneira, é o padrão de associação que precisa mudar.
As escolas, embora respeitem o pluralismo, também devem esforçar-se por reunir as crianças de maneiras que mantenham abertas as possibilidades de cooperação. Isso se torna ainda mais importante quando o modelo pluralista é involuntário e distorcido. Não é necessário que todas as escolas tenham composição social idêntica; é necessário que os diversos tipos de crianças se deparem umas com as outras dentro delas.
Escolas de bairro
É bem provável que o povo seja bem informado e interessado, ativo e eficiente, quando está perto de casa, entre amigos e inimigos conhecidos. A escola democrática, então, deve ser uma clausura dentro do bairro: um ambiente especial dentro do mundo conhecido, onde as crianças se reúnem na qualidade de estudantes, como um dia se reunirão como cidadãs. Nessa situação, a escola realiza com mais facilidade seu papel mediador. De um lado, as crianças vão para escolas que os pais compreendem e apoiem. Por outro lado, as decisões políticas acerca das escolas são tomadas por um grupo diversificado de pais e responsáveis, dentro dos limites estabelecidos pelo Estado. E essas decisões são postas em prática por professores (quase sempre) educados fora do bairro e responsáveis tanto profissional quanto politicamente.
A distribuição da educação é, de fato, moldada de maneira significativa pelas lutas políticas locais no tocante ao tamanho e à administração cotidiana do distrito escolar, da atribuição de verbas, da procura de novos professores, do teor exato do currículo etc. As escolas de bairro jamais serão iguais nos diversos bairros. Por conseguinte, a igualdade simples de uma criança para cada vaga no sistema educacional só representa uma parte da história da justiça na educação. Quando os bairros são abertos (quando a identidade racial ou étnica não tem predomínio sobre afiliação e vagas) e quando todo bairro tem sua própria escola forte, então se fez justiça. As crianças são iguais dentro de um conjunto complexo de acordos distributivos. Recebem uma educação em comum, mesmo que haja variação no currículo (e nos modos como os professores reforçam ou omitem esta ou aquela área dentro do currículo) de um lugar para outro. A coesão do corpo docente e o zelo colaborativo ou crítico dos pais também varia; mas não são variações intrínsecas ao caráter da escola democrática, características inevitáveis da igualdade complexa.