Justiça Distributiva: Perspectivas e Concepções
Capítulo VIII
David Miller e as Perspectivas de Justiça Social “Contra o Igualitarismo Global” – Parte 1
Os Quatro fundamentos necessários para uma teoria de justiça social
David Miller não enfrenta a discussão sobre a validade abstrata desta ou daquela teoria, mas sobre se as circunstâncias sociais e políticas em que a ideia de justiça social tomou forma e se tornou um ideal funcional e diretor; se ainda existe ou se terminou, finalmente, a era da justiça social.
Em 2005, no artigo “Against global egalitarianism”, David Miller procura oferecer argumentos que demonstrem motivos para não apostarmos no igualitarismo global como a base reguladora para a defesa da justiça global. Para isso, Miller sugere que a defesa em torno do igualitarismo global é sustentada por, no mínimo, três deficientes premissas:
1. O argumento cosmopolita de que todas as vidas humanas possuem valor igual;
2. O argumento de que a nacionalidade é uma característica moralmente arbitrária; e
3. O argumento que tenta demonstrar que as relações entre os conacionais não devem ser consideradas como possuindo um caráter especial, em termos de justiça.
As desigualdades globais são importantes para Miller, não porque desejamos um fundamento para o igualitarismo global, mas porque seus efeitos nos distanciam de um senso de justiça. Para Miller, de modo geral, as questões de desigualdade global são importantes pelos seus efeitos, ou pelo o que ela nos diz sobre os custos de realização da justiça (instituições, mecanismos etc), mas não porque é intrinsecamente injusto. Isto porque, para ele, quanto mais abandonamos o ideal de um igualitarismo global, mais próximo estaremos de encarar as injustiças globais e construir modelos para responder a essas questões com mais precisão.
Neste artigo, Miller chega a apresentar um conceito de justiça global alternativo ou “nonegalitarian”, mas expressa basicamente 3 princípios básicos que este conceito deve basear-se:
1. Respeitar os direitos humanos;
2. Abster-se de explorar comunidades e indivíduos vulneráveis; e
3. Obrigação de prestar a todas as comunidades a oportunidade de alcançar a autodeterminação e justiça social.
Miller admite que estes requisitos não constituem um conceito completo de justiça global, mas servem para indicar como uma concepção de justiça global que não exige que os indivíduos devem ser igualmente considerados, deve ser.
Miller nega que a justiça global deva se basear em um princípio da igualdade de oportunidades, ou recursos, por exemplo. Ele acredita que qualquer que seja um projeto de justiça global que se baseie nesse princípio, acaba se tornando vítima da questão crucial apresentada anteriormente: a tentativa de achar um modelo apropriado de comparação entre diferentes nações.
Entretanto para chegar a tal conclusão, importante fazermos considerações sobre o pensamento exposto por Miller em uma palestra que gerou o artigo, em 1998, “Perspectivas de justiça social”.
Em outras épocas, quando se debatiam temas como a justificação da propriedade privada ou a melhor forma de organização econômica — o que acontecia cada vez mais à medida que o século avançava — invocavam-se ideias de justiça distributiva e empregava-se ocasionalmente a expressão «justiça social», embora sem qualquer percepção de que se atravessava a fronteira de um importante conceito.
Os autores em questão eram, sobretudo, liberais em sentido lato: entre os autores britânicos, os mais representativos eram John Stuart Mill, Leslie Stephen e Henry Sidgwick. Na Europa continental os católicos progressistas começaram a desenvolver noções de justiça social em fins do século, mas foram necessários mais uns vinte e cinco anos até a ideia ser oficialmente acolhida em encíclicas papais. A impressão de Miller é de que os socialistas se sentiam menos inclinados a empregar a ideia nos seus escritos, em parte, sem dúvida, por causa das retumbantes denúncias de Marx e Engels, para os quais falar de justiça era posicionar-se no terreno da ideologia burguesa.
Não obstante, o aparecimento de movimentos socialistas como pretendentes sérios ao poder político foi decisivo para o desenvolvimento das ideias de justiça social, uma vez que foi precisamente o desafio socialista que obrigou os liberais a olharem mais criticamente para a propriedade da terra, a propriedade privada da indústria, a riqueza por herança e outras características do capitalismo e a investigarem os vários sistemas de organização industrial socialistas e comunistas que estavam a ser preconizados. Só quando a estrutura social existente é seriamente atacada é que a sua defesa ética se torna necessária. A maior parte das primeiras abordagens da justiça social ficaram-se por propostas por um capitalismo reformado, expurgado dos aspectos eticamente mais repulsivos.
A teorização sobre justiça social só se iniciou realmente nos primeiros anos do século XX, tendo, muito a propósito, o primeiro livro sido intitulado “Social Justice” e publicado em Nova Iorque em 1900. O seu autor foi Westel Willoughby, que era professor de Ciências Políticas na Universidade John Hopkins e sofrera a influência dos últimos idealistas, como T. H. Green.
Começa por observar que em tempos de soberania popular não podemos evitar que as instituições sociais e econômicas sejam submetidas a avaliação crítica e, em particular, que se questione se tratam os indivíduos com justiça.
A demanda por justiça social é uma consequência natural da expansão da instrução: «Os povos de todos os países civilizados estão a submeter as suas condições sociais e econômicas às mesmas provas de equidade e de justiça com que já questionaram no passado a legitimidade das instituições políticas.» Em particular, declara Willoughby, é imperativo encontrar maneiras de refutar a argumentação socialista, sendo, de fato, grande parte do livro uma crítica a doutrinas socialistas ou semi-socialistas, como o sistema do imposto sobre a terra de Henry George, a doutrina segundo a qual o trabalhador tem direito à totalidade do produto do seu trabalho, várias propostas de natureza comunista, etc..
Um aspecto interessante da obra de Willoughby, que é comum a outras obras deste período, como a do filósofo social britânico L. T. Hobhouse, Elements of Social Justice, publicada em 1922, é a utilização que faz de uma concepção orgânica da sociedade. A sociedade é encarada como um organismo em que o desabrochar de cada um dos seus elementos requer o concurso de todos os outros, consistindo o objetivo da justiça social em determinar os arranjos institucionais que permitirão a cada pessoa contribuir plenamente para o bem-estar social. Os princípios de necessidade, abandono e igualdade são examinados sob esta perspectiva. Até certo ponto, pois, isto reflete a influência da filosofia idealista, a qual adota uma visão da sociedade como um todo integrado, mas penso que daqui também podemos tirar uma lição mais geral sobre os pressupostos necessários para fazermos da justiça social um ideal praticável. A menos que tenhamos a ideia de que a sociedade é constituída por partes interdependentes, com uma estrutura institucional que afeta as perspectivas de cada um dos seus membros individualmente e que é susceptível de ser reformada desta ou daquela maneira, a justiça social continuará a ser uma expressão sem significado.
Segundo David Miller afirma é que, quando, nos primeiros anos do século XX, se cristalizou a ideia de justiça social, esta apropriou-se de certos fundamentos, ou compromissos, obrigações, (assunções) acerca da ordem social que, embora nem sempre fossem explícitas, são, no entanto, o fundamento dessa mesma ideia. Podemos distinguir, pelo menos quatro, que chamaríamos de fundamentos (“assunções”, na tradução portuguesa) desse tipo:
1. Em primeiro lugar, temos a ideia de uma sociedade com uma determinada composição, a qual constitui um universo de distribuição, cuja equidade ou iniquidade, em dado momento, diferentes teorias de justiça pretendem demonstrar. A justiça social tem a ver essencialmente (embora não exclusivamente) com o tratamento que, por comparação, diferentes indivíduos recebem: por que há de A ter direitos que B não tem, por que há de o rendimento de C ser muito mais alto do que o de D, e assim por diante. Questões como estas são o bê-a-bá das teorias de justiça. Mas pressupõem que se trata de determinado conjunto de pessoas entre as quais podem fazer-se comparações relevantes. Poder-se-á pensar que não há razão para que desse conjunto não façam parte todos os seres humanos do mundo. Mas, na realidade, se observarmos as teorias da justiça social que se apresentam, verificaremos que o seu âmbito, quase sem exceção, está restringido a comunidades de pessoas politicamente organizadas, por outras palavras, grosso modo, aos membros de Estados-nações. Nas primeiras teorias tal é simplesmente assumido sem que seja explicitado; mais recentemente, reconheceu-se que é uma assunção necessária, mas relativamente pacífica. Rawls, por exemplo, diz que os seus princípios de justiça são elaborados para serem aplicados numa sociedade concebida como um sistema fechado:
«É autônoma e não está em relação com outras sociedades. Só nela entramos pelo nascimento e só dela saímos pela morte.» A sua suposição é a de que «as fronteiras destes sistemas são dadas pela noção de comunidade nacional autônoma».
Por que é necessária esta suposição? A resposta cabal vai depender de sabermos qual é precisamente a teoria de que estamos a falar. Para Miller, algumas teorias de justiça são mais exigentes do que outras quanto à sua fundamentação num pano de fundo comunitário —, mas o que podemos dizer a um nível mais geral é que o nosso sentido de equidade distributiva só funciona se as pessoas que observamos estiverem ligadas entre si de determinadas maneiras. Imaginemos que numa viagem de exploração descobríamos duas ilhas habitadas por tribos diferentes e que nenhuma delas sabia da existência da outra.
Cada tribo consegue viver, num conforto razoável, dos recursos existentes na respectiva ilha, mas acontece que o nível de vida da primeira tribo é consideravelmente mais elevado do que o da segunda. Seria absurdo começar a indagar se esta desigualdade é ou não justa porque, uma vez que as duas tribos estão completamente desligadas, estatisticamente, a diferença entre os seus níveis de vida não tem qualquer efeito sobre a vida coletiva de qualquer das tribos e não é geradora de qualquer problema de justiça distributiva.
2. Esta primeira asserção — de que para falarmos de justiça social precisamos primeiro de ter um corpo de pessoas ligadas entre si para formarem o universo de distribuição — é potenciada pela segunda assunção, que diz que esta noção deve aplicar-se a um conjunto identificável de instituições cujo efeito sobre as oportunidades de vida de diferentes indivíduos também possa ser detectado. As primeiras teorias de justiça social eram produto dos manuais de economia política do século XIX, consistindo uma das suas tarefas principais em explicar a divisão do produto social entre fatores como a terra, o capital e o trabalho. Era um dado adquirido que era possível descobrir leis sociais que determinassem os resultados da distribuição e que também permitiriam que se previsse o resultado da modificação de uma instituição, como, por exemplo, passar a terra para a propriedade pública. Aqui também encontramos esta assunção sob forma explícita na obra de Rawls quando diz que o fundamento da justiça social é a estrutura fundamental da sociedade, entendida esta como as grandes instituições sociais, que «distribuem os direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão dos benefícios da cooperação social. Por grandes instituições entendo a constituição política e os organismos econômicos e sociais principais [...] [os quais] no seu conjunto, formando um sistema [...] definem os direitos e deveres dos homens, as suas expectativas e até que ponto podem esperar obter êxito.»
3. A terceira assunção decorre naturalmente da segunda. Diz, nomeadamente, que há organismos capazes de alterar a estrutura institucional mais ou menos no sentido exigido pelo teoria que preferimos. Será inútil elaborar princípios para reformar a estrutura fundamental se de fato não dispomos de meios para aplicar essas reformas. O principal organismo aqui é, obviamente, o Estado: as teorias de justiça social preconizam mudanças legislativas e políticas que um Estado bem-intencionado supostamente introduz. Aqui David Miller não pretende dizer que as teorias em questão são exclusivamente destinadas aos legisladores e outros funcionários do Estado. Muitas vezes é necessária a cooperação dos cidadãos para fazer funcionar as reformas; portanto, podemos dizer que a teoria é apresentada como uma doutrina pública, a que, idealmente, todos os membros da comunidade política devem aderir. Não obstante, dado que a teoria se destina a regulamentar a estrutura fundamental e esta é um complexo de instituições com uma dinâmica interna, se a teoria da justiça for mais do que um ideal utópico, é essencial um organismo com o poder e a capacidade de dirigir que supostamente o Estado detém.
4. A última assunção é a de que a teoria pode constituir o fundamento de um consenso político entre os cidadãos da comunidade política. Esta assunção deriva quase diretamente da terceira, desde que admitamos que o Estado em questão é um Estado democrático. Se o Estado for o principal organismo a regulamentar a estrutura fundamental e partirmos do princípio de que as ações do Estado refletem a vontade dos cidadãos, então as teorias de justiça devem aspirar a ganhar a aprovação do público em geral, e não apenas a da elite política. Esta ideia de haver potencialmente um consenso político sobre justiça social é muito notória na obra recente de Rawls, mas ao longo da vida deste conceito podemos encontrar idêntica assunção expendida por outros teóricos. Os seus primeiros defensores, como, por exemplo, Mill e Sidgwick, puseram-se a sistematizar o discurso da «consciência moral comum» sobre as questões de justiça, aplicando-o às instituições sociais. O argumento não era o de que as pessoas endossariam espontaneamente a teoria que se lhes oferecia, mas que poderiam ser racionalmente persuadidas a aceitá-la porque os seus componentes fundamentais estavam já presentes na ideia corrente que faziam de justiça. Ficava assim de lado, em particular, a eventualidade de as pessoas estarem profundamente divididas quanto a questões de justiça, por exemplo, segundo classes sociais. Se for impossível chegar a entendimento prático sobre a justiça, então não terá muito interesse, em democracia, elaborar tal teoria.