Justiça Distributiva: Perspectivas e Concepções - Capítulo VI

Capítulo VI
VIDAS, LIBERDADES E CAPACIDADES – Segunda Parte

O núcleo da abordagem das capacidades não é, portanto, apenas o que uma pessoa realmente acaba fazendo, mas também o que ela é de fato capaz de fazer, quer escolha aproveitar essa oportunidade, quer não.

No entanto, a crítica da abordagem das capacidades baseada na realização merece séria consideração, uma vez que repercute em muitas pessoas, e é importante perguntar se seria mais adequado basear julgamentos sociais nas vantagens ou desvantagens das pessoas em suas realizações efetivas e não em suas respectivas capacidades de realização.

Capacidades são definidas derivadamente a partir dos funcionários, e incluem inter alia todas as informações sobre as combinações de funcionamentos que uma pessoa pode escolher. O conjunto de funcionamento realmente escolhidos está, obviamente, entre as combinações possíveis. E, se estivéssemos de fato interessados, nada nos impediria de basear a avaliação de “um conjunto capacitário” na avaliação da combinação de funcionamentos escolhida a partir desse conjunto. Se a liberdade só tivesse uma importância instrumental para o bem-estar de uma pessoa, se a escolha não tivesse nenhuma relevância intrínseca, então com efeito esse poderia ser o foco informacional adequado para a análise da capacidade.

Há muito mais a ser dito, de forma positiva e afirmativa, a favor da importância da perspectiva das capacidades e da liberdade.

Primeiro, mesmo um rigoroso “empate” entre duas pessoas quanto aos funcionamentos realizados ainda pode ocultar diferenças significativas entre suas respectivas vantagens, que poderiam nos fazer compreender que uma pessoa pode estar realmente “em desvantagem” muito maior do que outra. Por exemplo, com relação a passar fome e estar desnutrida, uma pessoa que jejua voluntariamente por motivos políticos ou religiosos pode estar tão privada de alimentos e desnutrida quanto uma vítima da fome. Sua manifesta desnutrição – o funcionamento realizado por ambas – pode ser a mesma coisa e, ainda assim, a capacidade da pessoa próspera que decide jejuar pode ser muito maior do que a da pessoa que morre de fome involuntariamente por causa da pobreza e indigência. A ideia da capacidade pode acomodar essa importante distinção, uma vez que é orientada para a liberdade e as oportunidades, ou seja, a aptidão real das pessoas para escolher viver diferentes tipos de vida a seu alcance, em vez de confinar a atenção apenas ao que pode ser descrito como a culminação – ou consequências – da escolha.

Em segundo lugar, a capacidade de escolher entre diferentes filiações na vida cultural pode ter importância tanto pessoal como política. Consideremos a liberdade dos imigrantes de países não ocidentais para conservar partes das tradições culturais e dos estilos de vida ancestrais que valorizam, mesmo depois de terem se restabelecido em um país europeu ou nos Estados Unidos. Essa questão complexa não pode ser avaliada adequadamente sem que se distinga entre fazer algo e ser livre para fazê-lo. Pode-se construir um argumento significativo a favor de que os imigrantes tenham a liberdade de conservar pelo menos alguns elementos de sua cultura ancestral (como seu culto religioso, ou a lealdade à poesia e à literatura nativas), se eles valorizam essas coisas depois de compará-las com os padrões de comportamento prevalecentes no país em que estão relacionados, e com frequência após terem considerado seriamente o raciocínio predominante no país a favor de diferentes práticas.

No entanto, a importância dessa liberdade cultural não pode ser vista como um argumento a favor de alguém que busca seu estilo de vida ancestral tenha ou não razões para escolher buscá-lo. A questão central, nesse argumento, é a liberdade de escolher como viver – incluindo a possibilidade de incorporar elementos de suas preferências culturais ancestrais se assim o desejar -, não podendo ser transformado em um argumento a favor de que sempre busque padrões de comportamento, independentemente de que goste de fazer essas coisas ou tenha razões para conservar essas práticas. A importância da capacidade, refletindo oportunidade e escolha, ao invés da celebração de algum estilo de vida particular sem consideração pela preferência ou escolha, é fundamental para o ponto em questão.

Em terceiro lugar, há também uma questão relacionada a políticas que faz com que a distinção entre capacidades e realizações seja importante por uma razão diferente. Diz respeito às responsabilidades e obrigações gerais das sociedades e das outras pessoas para ajudar os necessitados, que podem ser importantes tanto para as disposições públicas dentro dos Estados como para o exercício geral dos direitos humanos. Por exemplo, a importância de ter algum tipo de garantia de cuidados básicos de saúde refere-se principalmente a dar às pessoas a capacidade de melhorar seus estado de saúde. Se uma pessoa tem a oportunidade de receber cuidados de saúde socialmente garantidos, mas decide, com pleno conhecimento, não fazer uso dessa oportunidade, então se pode argumentar que essa privação não é uma questão social tão cadente quanto seria um fracasso em prover a tal pessoa a oportunidade de receber cuidados de saúde.

Assim, há muitas razões positivas pelas quais seria sensato usar a perspectiva informacional mais ampla das capacidades em vez de se concentrar apenas no ponto de vista, mais restrito em termos informacionais, dos funcionamentos realizados.

A renda ou riqueza é uma forma inadequada de julgar vantagem, como discutiu com grande clareza Aristóteles na Ética a Nicômano: É evidente que a riqueza não é o bem que procuramos, pois é meramente útil e em proveito de alguma coisa. A riqueza não é algo que valorizamos em si mesmo. Ela tampouco serve invariavelmente como bom indicador do tipo de vida que podemos alcançar. Uma pessoa com uma grave deficiência não pode ser considerada em maior vantagem apenas porque tem uma maior renda ou riqueza do que um vizinho forte e são. Na verdade, uma pessoa rica com alguma deficiência pode estar sujeita a muitas restrições às quais a pessoa mais pobre sem a desvantagem física pode não estar. Ao julgar as vantagens que diferentes pessoas têm em relação a outras, temos de olhar para as capacidades totais que conseguem desfrutar. Esse é certamente um argumento importante para usarmos, como base de avaliação, a abordagem das capacidades em vez do foco sobre rendas e a riqueza, que é centrado em recursos.

Já que a ideia da capacidade está ligada à liberdade substantiva, ela confere um papel central à aptidão real de uma pessoa para fazer diferentes coisas que ela valoriza. A abordagem se concentra nas vidas humanas, e não apenas nos recursos que as pessoas têm, na forma de posse ou usufruto de comodidades. Renda e riqueza são muitas vezes tomadas como principal critério do êxito humano. Ao propor um deslocamento fundamental do foco da atenção, passando dos meios de vida para as oportunidades reais de uma pessoa, a abordagem das capacidades visa a uma mudança bastante radical nas abordagens avaliativas padrão amplamente utilizadas em economia e ciências sociais.

Ela também inicia um afastamento bastante substancial da “orientação para os meios” que prevalece em algumas abordagens padrão na filosofia política, como, por exemplo, o foco de John Rawls sobre os “bens primários” (incorporados em seu “princípio da diferença”) para avaliar as questões distributivas em sua teoria da justiça. Os bens primários são meios úteis para muitas finalidades, como a renda e a riqueza, os poderes e prerrogativas associados a cargos, as bases sociais da autoestima, e assim por diante. Eles não são valiosos em si mesmos, mas podem, em diferentes graus, nos ajudar na busca daquilo que realmente valorizamos. No entanto, apesar dos bens primários serem, na melhor das hipóteses, os meios para os fins valiosos da vida humana, eles próprios são vistos como o principal indicador para julgar a equidade distributiva segundo os princípios rawlsianos de justiça. Através do reconhecimento explícito de que os meios para a vida humana satisfatória não são eles mesmos os fins da boa vida (o ponto principal do argumento aristotélico), a abordagem das capacidades ajuda a produzir uma significativa ampliação do alcance do exercício avaliativo.

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