Justiça Distributiva: Perspectivas e Concepções (cap 4)

Capítulo IV
Problemas que podem ser efetivamente acomodados na abordagem Rawlsiana

Alguns problemas importantes podem ser acomodados sem contrariar a abordagem básica de John Rawls e que já vem recebendo considerável atenção na literatura.

Entretanto, importante procurar situar a posição de John Rawls no contexto da concepção de justiça. Segundo a autora Ana Rita Ferreira, citando o português João Cardoso Rosas (2001):

(...) a concepção justiça que tem a sua origem nas ideias de Rawls, autor que defende, em Uma Teoria da Justiça, que a sociedade justa será aquela cuja “estrutura básica” (Constituição, leis sobre propriedade e fiscalidade, instituições que garantem direitos sociais) cumprir dois “princípios de justiça” na distribuição dos “bens sociais primários” (liberdades, oportunidades, rendimento e riqueza). O primeiro princípio é o que garante a igualdade na distribuição das liberdades básicas, dos direitos civis e políticos; o segundo princípio é aquele que garante a “igualdade democrática”, ou seja, garante, por um lado, a “igualdade equitativa de oportunidades” e assegura, por outro lado, o cumprimento do “princípio da diferença”, que mais não é do que uma forma de redistribuição da riqueza que assevera que haverá uma maximização da posição dos mais desfavorecidos. (...)

Na verdade, parece-nos que Rawls, na forma como enuncia o seu princípio da diferença em Uma Teoria da Justiça, está, de facto, preocupado com a posição absoluta dos mais desfavorecidos, mas não com a sua posição relativa face aos mais favorecidos. Se imaginarmos um cenário em que há, num determinado momento, mais riqueza a distribuir do que num momento anterior, podemos dizer que é certo que o princípio da diferença exigirá que se melhore, por via da distribuição, a posição daqueles que estão na base da pirâmide social; no entanto, o mesmo princípio não nos parece negar que aqueles que ocupam o topo da mesma pirâmide possam melhorar muitas vezes mais a sua situação. No fundo, julgamos que, se o indivíduo “A” passar de um rendimento de 10 para um de 20 após redistribuição, e o indivíduo “B” passar de um rendimento de 50 para um de 100, o princípio da diferença não deixa de se cumprir, embora a desigualdade entre A e B tenha aumentado. Parece-nos, pois, que, para Rawls, e ao contrário do que Rosas indicia, esta situação seria justa, apesar de ser mais economicamente mais desigual. No entanto, concedemos que a fórmula usada por Rawls em Justice as Fairness: a Restatement, trinta anos depois de ter escrito seu opus magnum, para descrever os princípios da justiça é mais ambígua relativamente a este aspecto, podendo suscitar dúvidas sobre o facto de o princípio da diferença implicar ou não um combate às desigualdades – talvez tenha havido, ao longo dos anos, uma mudança de posição do autor relativamente a este aspecto e, se assim for, as dúvidas que levantámos não têm qualquer razão de ser. (...)

As concepções libertarista e comunitarista de justiça foram, em grande medida, desenvolvidas contra a concepção liberal-igualitária, nomeadamente tal como formulada por Rawls. (...)

Já para Álvaro de Vita (2012):

Os dois princípios da teoria de Rawls são propostos como um ideal de justiça igualitária que objetiva mitigar os efeitos de fatores moralmente arbitrários na distribuição institucional de direitos e deveres fundamentais, dos benefícios e encargos da cooperação social e, desse modo, tornar essa distribuição justificável a cidadãos considerados livres e iguais. Esse é o “papel social” ou o “papel prático” que uma concepção publicamente aceitável de justiça desempenha: o de proporcionar “um ponto de vista publicamente reconhecido, com base no qual todos os cidadãos podem inquirir, uns perante os outros, se suas instituições políticas e sociais são justas”. Para ser publicamente aceitável, é essencial que uma concepção de justiça seja capaz de desempenhar esse papel prático.

(Há) duas implicações importantes para a teorização sobre a justiça social seguem-se do que acabo de afirmar: por um lado, leva-se em conta que os arranjos institucionais existentes, políticos e sociais, apoiados na coerção coletiva que os cidadãos de uma sociedade democrática exercem uns sobre os outros, têm efeitos decisivos sobre as perspectivas socioeconômicas de cada pessoa; de outro, ao especificar que exigências esses arranjos institucionais devem idealmente satisfazer para serem justificáveis a todos, uma concepção de justiça que é capaz de desempenhar esse papel prático não é contaminada (...) pelas injustiças das instituições existentes. Trata-se de uma concepção formulada no âmbito do que Rawls denomina “teoria ideal” da justiça. Mas, (...) uma teoria ideal de tipo institucional, é a que mais provavelmente é capaz de oferecer orientação no mundo real; e faz isso não por aceitar condições não ideais, mas por nos mostrar como nossas instituições poderiam ser justificadas sob circunstâncias ideais”. Isso corresponde ao propósito central da filosofia política tal como concebida por Rawls, que é o de formular o que ele denominou uma “utopia realista. E uma das condições para que uma concepção de justiça seja realisticamente utópica é a de que “seus princípios e preceitos fundamentais sejam praticáveis e aplicáveis a arranjos sociais e políticos existentes”.

Álvaro de Vita considera John Rawls, juntamente com David Miller, o teórico de maior peso associação à posição que Charles Beitz (conforme mencionamos no nosso primeiro artigo) denominou de liberalismo social. E ainda esclarece o referido autor:

Até bem recentemente, em meio a uma literatura sobre justiça global dominada por teóricos cosmopolitas, O direito dos povos, de Rawls, permanecia como o único esforço mais abrangente de articulação teórica dessa posição. Um ponto importante a ressaltar com respeito a esse esforço, que transcende a teoria específica da justiça internacional proposta em O direito dos povos, é o de que nele se expressa um enfoque normativo sobre a justiça que rejeita a posição metodológica que Liam Murphy denominou “monismo”. A ideia básica do antimonismo é a de que diferentes tipos de princípios aplicam-se a tipos diferentes de objetos que se podem considerar como suscetíveis de avaliações de justiça. “Não há motivo para supor de antemão”, afirma Rawls já na seção 2 de Uma teoria da justiça, “que os princípios que são satisfatórios para a estrutura básica sejam válidos para todos os casos. Esses princípios podem não funcionar nas normas e nas práticas de associações privadas ou de grupos sociais menos abrangentes. Podem ser irrelevantes para as diversas convenções e para os diversos costumes informais da vida cotidiana; podem não elucidar a justiça, ou talvez melhor, a equidade de arranjos cooperativos voluntários ou dos procedimentos para realizar acordos contratuais. As condições do direito dos povos podem exigir outros princípios, inferidos de maneira um tanto diferente”.

Então, a pergunta a fazer é: se a justiça do que acontece em uma sociedade depende de uma combinação de aspectos institucionais e características comportamentais reais, junto com outras influências determinantes das realizações sociais, então é possível identificar instituições “justas” para uma sociedade sem torná-las dependentes do comportamento real (não necessariamente idêntico ao comportamento “justo” ou “razoável”)? A mera aceitação de alguns princípios como constituintes da “concepção política da justiça” correta não resolve esse problema se a teoria da justiça procurada precisa ter algum tipo de aplicabilidade para orientar a escolha das instituições nas sociedades reais.

Na verdade, temos boas razões para reconhecer que a busca da justiça é em parte uma questão de formação gradual de padrões comportamentais – não há nenhum salto imediato da aceitação de alguns princípios de justiça e um redesenho total do comportamento real de todos os membros de uma sociedade em consonância com essa concepção política de justiça. Em geral, as instituições têm de ser escolhidas não apenas em consonância com a natureza da sociedade em questão, mas também em conformidade com os padrões reais de comportamento que se pode esperar, mesmo que uma concepção política de justiça seja aceita por todos, e até mesmo depois de ela ser aceita. No sistema de Rawls, a escolha dos dois princípios de justiça visa assegurar tanto a escolha certa das instituições como o surgimento do comportamento real adequado por parte de todos, fazendo com que as psicologias individual e social sejam completamente dependentes de um tipo de ética política. A abordagem de Rawls, desenvolvida com admirável coerência e habilidade, implica uma simplificação drástica e formulista de uma tarefa enorme e multifacetada – a de combinar a operação dos princípios de justiça com o comportamento real das pessoas -, o que é central para o raciocínio prático sobre a justiça social. Isso é lamentável, já que se pode argumentar que a relação entre as instituições sociais e o comportamento individual real – em oposição ao ideal – não pode deixar de ser extremamente importante para qualquer teoria da justiça que vise orientar a escolha social para alcançar a justiça social.

Amartya Sem (2012) apresenta o que considera alternativas à abordagem contratualista, bem como a relevância das perspectivas globais:

O método investigativo de Rawls invoca o raciocínio “contratualista”, que envolve a pergunta: qual “contrato social” seria aceito por todos, por unanimidade, na posição original?  O método de raciocínio contratualista é amplamente usado na tradição kantiana, e tem tido uma grande influência na filosofia política e moral contemporânea – em grande medida liderada por Rawls. A justiça como equidade, como teoria, é amplamente situada por Rawls dentro dessa tradição. Ele descreve sua teoria (...) como uma tentativa de “generalizar e levar a um nível maior de abstração a teoria tradicional do contrato social assim como representada por Locke, Rousseau e Kant”.

Rawls compara esse modo de argumentação, que produz um contrato social, com tradição utilitarista, que se concentra em produzir “a maior soma de bem para todos os seus membros, em que esse bem é um bem completo especificado por uma doutrina abrangente”. Trata-se de uma comparação interessante e importante, embora o foco exclusivo de Rawls sobre esse contraste específico lhe permita negligenciar a exploração de outras abordagens que não são contratualistas nem utilitaristas.

A utilização do contrato social sob a forma rawlsiana inevitavelmente limita o envolvimento dos participantes da busca de justiça para os membros de uma dada comunidade política, ou “povo” (como Rawls chamou tal coletividade, muito semelhante à de um Estado-nação na teoria política padrão). O artifício da posição original deixa-nos aqui com pouca escolha, a não ser buscar um gigantesco contrato social global, como Thomas Pogge e outros têm feito em uma extensão “cosmopolita” da posição original rawlsiana da criação de instituições justas para a sociedade global, ou seja, exigindo um governo mundial, é no entanto, profundamente problemática.

O mundo para além das fronteiras de um país não pode deixar de entrar na apreciação da justiça dentro de um país, por pelo menos duas razões distintas, que foram rapidamente identificadas acima. Em primeiro lugar, o que acontece nesse país, e como funcionam suas instituições, não pode deixar de ter efeitos, consequências por vezes enormes, sobre o resto do mundo. Isso é bastante óbvio quando se considera a operação do terrorismo mundial ou as tentativas de remover suas atividades, ou acontecimentos como a invasão do Iraque liderada pelos Estados Unidos, mas as influências que ultrapassam as fronteiras nacionais são totalmente onipresentes no mundo em que vivemos. Em segundo lugar, cada país, ou cada sociedade, pode ter crenças paroquiais que exigem um exame mais global e uma cuidadosa análise, pois podem ampliar a classe e o tipo de perguntas considerados com detalhe, e porque os pressupostos factuais que estão por trás de juízos éticos e políticos específicos podem ser questionados com a ajuda das experiências de outros países ou sociedades. Um questionamento globalmente sensível pode ser mais importante em uma avaliação mais completa do que as discussões locais sobre, digamos, os fatos e valores que cercam a posição desigual das mulheres, ou a aceitabilidade da tortura ou – quanto às punições – da pena capita. A aplicação da equidade na análise de Rawls aborda outras questões, em especial, diferentes interesses e prioridades dos indivíduos dentro de dada sociedade.

Na teoria rawlsiana da “justiça como equidade”, a ideia de equidade refere-se a pessoas (como ser imparcial em relação a elas), enquanto os princípios da justiça rawlsiana se aplicam à escolha de instituições (como identificar instituições injustas). A primeira leva à segunda na análise de Rawls. Temos de levar em conta o fato de que equidade e justiça são conceitos muito diferentes na argumentação rawlsiana.

 

publicidade
publicidade
Crochelandia

Blogs dos Colunistas

-
Ana
Kaye
Rio de Janeiro
-
Andrei
Bastos
Rio de Janeiro - RJ
-
Carolina
Faria
São Paulo - SP
-
Celso
Lungaretti
São Paulo - SP
-
Cristiane
Visentin

Nova Iorque - USA
-
Daniele
Rodrigues

Macaé - RJ
-
Denise
Dalmacchio
Vila Velha - ES
-
Doroty
Dimolitsas
Sena Madureira - AC
-
Eduardo
Ritter

Porto Alegre - RS
.
Elisio
Peixoto

São Caetano do Sul - SP
.
Francisco
Castro

Barueri - SP
.
Jaqueline
Serávia

Rio das Ostras - RJ
.
Jorge
Hori
São Paulo - SP
.
Jorge
Hessen
Brasília - DF
.
José
Milbs
Macaé - RJ
.
Lourdes
Limeira

João Pessoa - PB
.
Luiz Zatar
Tabajara

Niterói - RJ
.
Marcelo
Sguassabia

Campinas - SP
.
Marta
Peres

Minas Gerais
.
Miriam
Zelikowski

São Paulo - SP
.
Monica
Braga

Macaé - RJ
roney
Roney
Moraes

Cachoeiro - ES
roney
Sandra
Almeida

Cacoal - RO
roney
Soninha
Porto

Cruz Alta - RS