Capítulo III
Justiça com Equidade: A abordagem Rawlsiana
Temos boas razões para sermos persuadidos por Rawls de que a busca da justiça tem de estar ligada à ideia de equidade – de certa forma ser derivada dela.
A especificação de Rawls das exigências da imparcialidade é baseada em sua ideia construtiva de posição original, que é central para a sua teoria da “justiça com equidade”. A posição original é uma situação imaginada de igualdade primordial, em que as partes envolvidas não têm conhecimento de suas identidades pessoais, ou de seus respectivos interesses pelo próprio benefício, dentro do grupo como um todo.
A ideia de justiça aparece nas obras de Rawls em pelo menos três diferentes contextos. Primeiro, há a derivação de seus “princípios de justiça”, a partir da ideia de equidade, e esta, por sua vez, identifica as instituições necessárias, por razões de justiça, para a estrutura básica da sociedade. Essa teoria, que Rawls elabora em consideráveis detalhes, prossegue passo a passo para a regulamentação e implementação do que ele vê como as exigências da “justiça como equidade”. Há a segunda esfera – a da reflexão e do desenvolvimento de um “equilíbrio reflexivo” – na qual as ideais de justiça podem aparecer, mas o foco aqui é sobre nossas respectivas avaliações de bondade e retidão. O terceiro contexto é o que Rawls chama de “consenso sobreposto”, que lida com os complexos padrões de nossos acordos e desacordos dos quais dependem a estabilidade das ordens sociais. Trataremos no presente trabalho principalmente dos princípios de justiça – ou seja, o primeiro contexto.
Os representantes daquele grupo têm de escolher sob o véu de ignorância, ou seja, em um estado imaginado de ignorância seletiva (especialmente, ignorância sobre os interesses pessoais característicos e concepções reais de uma vida boa – conhecendo apenas o que Rawls chama de “preferências abrangentes”), e é nesse estado de concebida ignorância que os princípios de justiça são escolhidos por unanimidade. Os princípios da justiça, em uma formulação rawlsiana, determinam as instituições básicas que devem governar a sociedade que estão, podemos imaginar, por “criar”.
As deliberações nessa imaginada posição original sobre os princípios de justiça exigem a imparcialidade necessária para a equidade. Em A theory of justice (1971, p. 17), Rawls assim expõe essa ideia:
(...) a posição original é o status quo inicial apropriado que garante que os acordos fundamentais nela alcançados sejam justos. Esse fato gera o nome “justiça como equidade”. É claro, então, que quero dizer que uma concepção de justiça é mais razoável do que outra, ou justificável em comparação a outra, se pessoas racionais, na situação inicial, escolhessem seus princípios em vez dos princípios da outra concepção para o papel da justiça. As concepções de justiça devem ser classificadas por sua aceitabilidade por parte das pessoas assim situadas.
Em suas obras posteriores, nomeadamente em Political liberalism (1993), baseada em suas Conferências Dewey apresentadas na Columbia University, Rawls ofereceu uma defesa ainda mais ampla de como o processo de equidade supostamente funciona. A justiça como equidade é vista como sendo essencialmente uma “concepção política de justiça”, “já desde o início” (p. xvii). Uma questão básica abordada por Rawls é como as pessoas podem cooperar entre si em uma sociedade apesar de sustentarem “doutrinas abrangentes profundamente contrárias embora razoáveis” (p. xviii). Isso se torna possível “quando os cidadãos compartilham uma concepção política razoável de justiça”, que lhes proporciona “uma base a partir da qual a discussão pública de questões políticas fundamentais pode prosseguir e ser razoavelmente decidido, obviamente não em todos os casos, mas esperamos que na maioria daqueles sobre fundamentos constitucionais e questões de justiça básica” (pp. xx-xxi). Elas podem discordar, por exemplo, em suas crenças religiosas e pontos de vista gerais sobre o que constitui uma vida boa e que valha a pena, mas são levadas pelas deliberações a entrar em acordo, na explicação de Rawls, sobre a forma de levar em conta as diversidades entre os membros e chegar a um conjunto de princípios de justiça que garantam equidade para o grupo inteiro.
Rawls argumenta que, uma vez que fossem escolhidos por todos na posição original, com sua igualdade primordial, esses princípios constituem a “concepção política” adequada da justiça, e que as pessoas que crescem em uma sociedade bem-ordenada regida por esses princípios teriam uma boa razão para afirmar um senso de justiça com base neles (independentemente da concepção particular que cada pessoa tenha de uma “vida boa” e de suas prioridades “abrangentes” pessoais). Assim, a escolha unânime desses princípios de justiça faz boa parte do trabalho no sistema rawlsiano, o que inclui a escolha das instituições para a estrutura básica da sociedade, bem como a determinação de uma concepção política de justiça, o que, Rawls supõe, correspondentemente influenciará os comportamentos individuais em conformidade com essa concepção partilhada.
A escolha dos princípios básicos da justiça é o primeiro ato no desdobramento multiestágio da justiça social concebido por Rawls. Esse primeiro estágio leva ao seguinte, “constitucional”, no qual as instituições reais são selecionadas de acordo com os princípios de justiça escolhidos, levando em conta as condições particulares de cada sociedade. O funcionamento dessas instituições, por sua vez, leva novas decisões sociais em estágios posteriores do sistema rawlsiano, por exemplo, através de uma legislação apropriada (o que Rawls chama de “estágio legislativo”). A sequência imaginada avança passo a passo por linhas firmemente especificadas, com um desdobramento elaboradamente caracterizado dos arranjos sociais completamente justos.
O processo todo desse desdobramento é baseado no surgimento do que ele descreve como “dois princípios de justiça” no primeiro estágio, que influencia tudo o que acontece na sequência rawlsiana. Essa alegação altamente específica de Rawls sobre a escolha única, na posição original, de determinado conjunto de princípios para as instituições justas necessárias para uma sociedade plenamente justa seria uma parte do seu pensamento que está sujeito a certo ceticismo por outros estudiosos.
Entretanto, esse pensamento é consideravelmente suavizado e qualificado em seus escritos posteriores. De fato, em seu Justice as fairness: a restatement, Rawls observa que “há indefinidamente muitas considerações que podem ter apelo na posição original e cada concepção alternativa de justiça é favorecida por algumas considerações e desaprovada por outras”, e também que “o próprio equilíbrio das razões se assenta no juízo, ainda que seja um juízo informado e orientado pela argumentação”. Quando Rawls passa a admitir que “o ideal não pode ser plenamente alcançado”, sua referência é sua teoria ideal da justiça como equidade. No entanto, não precisa haver nada de especialmente “não ideal” em uma teoria da justiça que abra espaço para sobreviventes desacordos e discordâncias sobre algumas questões, enquanto foca muitas conclusões sólidas que emergiriam com força de um acordo fundamentado a respeito das exigências da justiça.
Com o tempo, Rawls parece aceitar que existem problemas incuráveis na obtenção de um acordo unânime sobre um conjunto de princípios de justiça na posição original que não podem deixar de ter consequências devastadoras para sua teoria da “justiça como equidade”.
Não obstante isso, devemos destacar o que Rawls argumentou como “princípios de justiça”, os quais emergem na posição original através de um acordo unânime (Political liberalism, 1993, p. 291):
a) Cada pessoa tem um direito igual a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com um esquema similar de liberdades para todos;
b) As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições. Primeira, elas devem estar associadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades. Segunda, elas devem ser para maior benefício dos membros menos favorecidos da sociedade.
É importante observar que os princípios de justiça identificados por Rawls incluem a prioridade da liberdade (o “primeiro princípio”), atribuindo precedência à liberdade máxima para cada pessoa sujeita à liberdade semelhante para todos, em relação a outras considerações, incluindo as de equidade econômica e social. A igualdade de liberdade pessoal tem prioridade sobre as exigências do segundo princípio, que diz respeito à igualdade de certas oportunidades gerais e à equidade na distribuição dos recursos de uso geral. Ou seja, as liberdades que todos podem desfrutar não podem ser violadas em razão, digamos, da promoção da riqueza ou renda, ou para uma melhor distribuição de recursos econômicos entre as pessoas. Ainda que Rawls coloque a liberdade sobre um pedestal absoluto que se destaca indiscutivelmente acima de qualquer outra consideração (e há aqui claramente certo extremismo), a alegação mais geral por trás de tudo isso é a de que a liberdade não pode se limitar a ser apenas um recurso que complementa outros recursos (como a opulência econômica); há algo muito especial no lugar da liberdade pessoal nas vidas humanas.
Outras questões de escolha institucional são retomadas nos princípios rawlsianos de justiça através de um complexo conjunto de requisitos que são agrupados no “segundo princípio”. A primeira parte do segundo princípio diz respeito à obrigação institucional de garantir que as oportunidades públicas sejam abertas a todos, sem que ninguém seja excluído ou prejudicado em razão de, digamos, raça ou etnia ou casta ou religião. A segunda parte do segundo princípio (chamada de “Princípio da diferença”) está relacionada com a equidade distributiva, bem como com a eficiência global, e assume a forma de fazer com que os membros da sociedade em pior situação sejam beneficiados tanto quanto possível.
A análise de Rawls da equidade na distribuição dos recursos invoca um índice do que ele chama de “bens primários”, que são meios gerais úteis para alcançar uma variedade de fins (quaisquer recursos que sejam em geral úteis para as pessoas obterem o que desejam, por mais variados que esses desejos possam ser). Rawls considera que os bens primários incluem coisas como “direitos, liberdades e oportunidades, renda e riqueza, e as bases sociais da autoestima”. Observem que as liberdades ingressam aqui novamente, dessa vez apenas como um recurso que complementa outros recursos, como a renda e a riqueza.
Além do que é incluído entre as considerações distributivas, é significativa a exclusão de Rawls de certas pretensões distributivas que têm sido enfatizadas por outros teóricos. De fato, é importante observar o tipo de consideração que Rawls não introduz no cômputo valorativo direto, como as pretensões baseadas em titularidade de direitos relacionados às ideias de mérito e merecimento, ou à posse de propriedade. Rawls fornece uma justificação arrazoada para essas exclusões, bem como para suas inclusões.
Podemos ressaltar algumas lições positivas da abordagem de John Rawls. Na sua teoria da justiça, um lugar importante é dado à eliminação da pobreza medida quanto à privação de bens primários, e esse enfoque, com efeito, foi poderosamente influente na análise de políticas públicas para a remoção da pobreza. Concentrando-se em “bens primários” (isto é, nos meios gerais úteis para alguém alcançar seus objetivos abrangentes), Rawls reconhece indiretamente a importância da liberdade humana em dar às pessoas oportunidades reais – por oposição àquelas apenas formalmente reconhecidas – para fazerem o que bem entendam com suas próprias vidas.