No dia 24 de agosto de 2013 eu fiz um artigo (este aqui) defendendo entusiasticamente o programa Mais Médicos. Postei-o nos meus espaços virtuais e divulguei-o por e-mail.
Se bem me lembro, logo no dia seguinte Eliane Cantanhêde, da Folha de S. Paulo, levantou a lebre de que o governo cubano se reservara o papel de agenciador de mão-de-obra, com a anuência do governo brasileiro.
Velho jornalista, percebi imediatamente o que decorreria deste erro crasso. E, nas postagens em que havia a possibilidade de eu acrescentar um P.S. ao meu texto, tasquei:
"...depois de escrito este artigo, veio à tona o estranho esquema de pagamentos adotado no programa Mais Médicos. O dinheiro vai para as autoridades cubanas, que repassam só uma parte para os doutores, confiscando mais da metade. (...) E, com isto, passaram a existir fundamentos legais para o questionamento do programa nos tribunais".
Fico pasmo com a ingenuidade das autoridades brasileiras que trataram do assunto. Bastou um detalhe inaceitável do programa para acionar todos os alarmes na minha cabeça. Elas, que conheciam todos os detalhes, acreditaram que ninguém descobriria. Superestimar o inimigo é receita certa de desastre.
Previsivelmente, ocorreram as defecções de sempre, dando munição para a direita deitar e rolar. O Congresso Nacional virou palco iluminado para o show do DEM, tendo como apresentador um antigo ferrabrás da UDR. E os EUA estenderam o tapete vermelho para todos os interessados em, após curto estágio, trocarem nossos cafundós por Miami.
Previsivelmente, um promotor do Ministério Público do Trabalho fez o que lhe competia diante de situações às quais jamais poderia fechar os olhos.
Previsivelmente, um notório jurista reacionário fulminou o programa num dos principais veículos da grande imprensa, colocando outros promotores na obrigação de intervirem também.
Ives Gandra Martins é um dos maiorais do Opus Dei, mas isto não invalida sua argumentação jurídica, apenas explica o fato de ele estar tão bem informado sobre aquilo que o governo cubano tanto esforçou-se para manter em segredo.
Seu artigo na Folha de S. Paulo desta 2ª feira, 17 (acesse aqui ) deveria soar no Palácio do Planalto como um alerta de que é chegada a hora das providências drástica: ou adequa o Mais Médicos às leis brasileiras, pagando aos profissionais a totalidade dos seus vencimentos e oferecendo-lhes proteção contra retaliações cubanas (ou seja, garantindo direito de asilo aos que renegarem os compromissos a eles impostos antes da viagem), ou é melhor dar um fim à sua participação no programa. Simples assim.
O contrato que eles assinaram com uma tal Mercantil Cubana Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S/A é simplesmente escabroso, submetendo os médicos a um controle tão rígido do seu governo, em nosso território, que nem sequer casarem com uma brasileira eles podem sem "autorização prévia por escrito" das autoridades de lá.
Gandra conclui (e, pelo menos quanto a isto, deve estar certo):
"A leitura do contrato demonstra nitidamente que consagra a escravidão laboral, não admitida no Brasil. Fere os seguintes artigos da Constituição brasileira: 1º incisos III (dignidade da pessoa humana) e IV (valores sociais do trabalho); o inciso IV do art. 3º (eliminar qualquer tipo de discriminação); o art. 4º inciso II (prevalência de direitos humanos); o art. 5º inciso I (princípio da igualdade) e inciso III (submissão a tratamento degradante), inciso X (direito à privacidade e honra), inciso XIII (liberdade de exercício de qualquer trabalho), inciso XV (livre locomoção no território nacional), inciso XLI (punição de qualquer discriminação atentatório dos direitos e liberdades fundamentais), art. 7º inciso XXXIV (igualdade de direitos entre trabalhadores com vínculo laboral ou avulso) e muitos outros".
Ou o governo brasileiro corrige agora e já tais lambanças, ou verá adiante o programa ser espetacularmente esquartejado nos tribunais durante o dia e no Jornal Nacional à noite.
Um desfecho triste e lamentável, pois era meritória a iniciativa de levar médicos, quaisquer médicos minimamente competentes, aos grotões desatendidos. Só não podíamos era sujeitarmo-nos tão obtusamente ao autoritarismo cubano, levantando a bola para os adversários marcarem uma avalanche de pontos.
Por último: o cesteiro Lula já fez dois cestos, mas, se não mudar seus planos, dificilmente chegará ao cento. O mais provável é empacar logo no terceiro.
Quem poderia se eleger surfando na onda de um programa popular e vitorioso, não se elegerá com os Gandras da vida afirmando, e a mídia a serviço da direita (ou seja, quase toda a mídia) trombeteando dia e noite, que "o Mais Médicos esconde a mais dramática violação de direitos humanos de trabalhadores de que se tem notícia, praticada, infelizmente, em território nacional".