Fiquei arrasado ao tomar conhecimento da morte do estimado companheiro e amigo Manoel Henrique Ferreira, o Mané. Deveria estar com 62 ou 63 anos e sofria de uma doença degenerativa, a ataxia cerebelar, que certamente foi causada ou agravada pelas bestiais torturas a que o submeteram.
Fiquei conhecendo-o quando organizava a Frente Estudantil Secundarista na zona Leste paulistana, em 1968. Estudava, se bem me lembro, num colégio da Vila Alpina. Logo se tornou um dos líderes do nosso movimento.
Suas convicções revolucionárias se expressavam também na música: tocava violão e cantava muito bem, principalmente as canções do Geraldo Vandré.
Em junho daquele ano, quando passamos algumas horas papeando com o compositor num boteco da rua Maria Antônia, apareceu um violão e ele pôde mostrar ao ídolo como interpretava suas criações.
É assim que sempre me lembrarei do Mané, romântico, esperançoso, convicto. Sua sinceridade era transparente e comovente.
Quando, no final de 1968, evidenciou-se que o movimento de massas se tornara inviável sob o terrorismo de estado pleno que o AI-5 instaurou, ele optou por continuar lutando da forma que ainda era possível, na clandestinidade.
De quase uma centena de estudantes aglutinados na nossa Frente, apenas oito nos dispusemos a correr os riscos da luta armada; Mané não vacilou nem um instante.
Ingressamos juntos na VPR e nunca mais o vi, pois nossas incumbências na organização seriam diferentes.
Soube de sua via crucis nas garras dos torturadores, coagido a renegar a militância; denunciando o arrependimento forçado em carta enviada a D. Paulo Evaristo Arns (o manuscrito pode ser baixado aqui); e sofrendo, em represália, novas torturas.
Em 2005, quando lancei o Náufrago da Utopia, ele me escreveu e trocamos dois ou três e-mails. Continuava magoado com os companheiros que tanto e tão duramente o hostilizaram, sem levarem em conta as circunstâncias extremas que o haviam levado a cair na armadilha da repressão.
Disse que meu livro tinha mostrado o inferno pelo qual passaram jovens idealistas como ele e o Massafumi Yoshinaga (sobre quem escrevi aqui). E também que preferia ficar distante daquilo que o levava a recordar momentos dolorosos. Achei que fosse uma forma cifrada de dizer que eu não o deveria procurar, entendendo o seu contato como uma manifestação de solidariedade.
Hoje eu mudaria o trecho a ele relativo da minha poesia sobre os companheiros secundaristas. Décadas atrás, era acertado dizer sobre o Mané que, "quando o épico/ resultou trágico,/ se desencontrou"; mas, depois de ter passado alguns tempos em parafuso, ele felizmente achou forças para superar os traumas e se reerguer.
Os versos que melhor serviriam como síntese definitiva da sua trajetória, contudo, o grande Paulo Vanzolini já escrevera antes de mim: "Ali onde eu chorei,/ qualquer um chorava./ Dar a volta por cima que eu dei,/ quero ver quem dava!".
Foi gratificante ver a morte do Mané noticiada de forma respeitosa (eis aqui um exemplo). Ele fez amplamente por merecer o reconhecimento dos melhores brasileiros.
Lamento que o pobre Massafumi não tenha aguentado esperar por uma visão mais equilibrada e compassiva do seu drama. É terrível pensar que ele morreu em meio às trevas mais densas, sozinho e amargurado!
* jornalista, escritor e ex-preso político. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com