Ainda como capitão do Exército,
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Minha mulher e duas amigas foram dar seus tirinhos no sábado, aproveitando uma oferta que encontraram na internet.
Depois de tanto tempo distante das armas, lembrei-me de que elas faziam parte do meu dia a dia quando lutava contra a ditadura militar. Aprendi a manejá-las e a fazer a limpeza. Atirava razoavelmente.
Não que isto haja me servido de algo. Quando fui preso, não tive tempo de sacar o .38 que trazia na cintura. Ingenuamente, não me passou pela cabeça que certo aliado com quem me encontrara à noite, dez horas antes, poderia ter caído nesse meio tempo, aberto o ponto que tínhamos acertado para a manhã seguinte e se prontificado a identificar-me para a repressão.
Então, ao entrar numa padaria da pça. Sáenz Peña (no bairro carioca da Tijuca) e pedir o café matinal, fui surpreendido e imobilizado por vários gorilas, principalmente o cabo Polvorelli, um judoca de 140 quilos. Daquele abraço de urso não havia como escapar.
Cerca de um ano antes, em 1969, estivera a pique de utilizar meu revólver --então um velho e impreciso .32. Levara um recruta para ministrar-lhe um treinamento básico de tiro e, na volta, topamos com barreira policial logo depois de uma curva da estrada.
O que me interpelou, teve suas suspeitas despertadas por eu desconhecer o nome do proprietário do veículo. [Fora emprestado pelo companheiro Moraes --Samuel Iavelberg--, com a recomendação de só olhar os documentos do carro em último caso, pois me revelariam sua identidade real. Só que, pego de surpresa, não o pude fazer.]
Eram uns cinco soldados e eu não teria a menor chance de abatê-los com meus seis cartuchos. Mesmo assim, pareceu-me a única coisa a fazer: morrer heroicamente (ou estupidamente).
O companheiro, entretanto, era mais vivido do que eu e soube livrar-nos do apuro apenas na base do diálogo, depois de me mandar esconder a arma embaixo do banco. Impingiu-lhes a lorota de que eu tomara emprestado o automóvel para viajar em função de uma morte em família, e estaria bêbado de sono. Colou; nossas aparências respeitáveis ajudaram.
Senti-me como se tivesse vencido a partida de xadrez com a Morte que o Max Von Sidow perdeu em O sétimo selo (1957), uma obra-prima de Ingmar Bergman.
Mas, o que eu quero contar é como eram as lições de tiro que nós, paisanos, recebíamos do ex-capitão e comandante nacional da VPR, Carlos Lamarca. Para quem gosta de conhecer reminiscências dos grandes personagens históricos (outras das minhas lembranças sobre Lamarca estão alinhavadas neste artigo).
Basicamente, ele orientava a nos posicionarmos de lado, para oferecermos menos superfície corpórea aos inimigos que estivessem atirando em nós.
A levarmos o revólver atrás da cabeça e, na volta, o engatilharmos com a outra mão.
A começarmos a apertar o gatilho à medida que o alvo despontasse na mira.
Tão logo estivesse enquadrado, daríamos o aperto final, suavemente, evitando o movimento brusco que arruinaria a pontaria.
O difícil, dizia ele, era mantermos o sangue frio com o inimigo atirando em nós. Mas, ele garantiu que teríamos muito mais chance com um disparo preciso do que dando vários tiros a esmo.
Então, treinávamos para automatizar a sequência acima e executá-la com presteza. E a instrução que ele dava era a de procedermos exatamente da mesma maneira na hora H, confiando no que aprendêramos e tentando esquecer que também estaríamos sob fogo.
Aconselhou, ainda, que não mirássemos na cabeça (embora aí a possibilidade de não haver reação fosse maior), optando pelo corpo, mais fácil de atingirmos; o impacto da bala jogaria o inimigo no chão e o colocaria à nossa mercê, mesmo se o disparo não fosse fatal. Mas, nunca deveríamos esquecer que o ferido ainda poderia ter forças para nos alvejar de volta. Todo cuidado era pouco.
Na primeira vez em que precisou atirar pra valer, o Lamarca não seguiu o próprio conselho. Vendo um guarda de trânsito colocar-se na porta de um banco que a VPR estava expropriando, pronto para balear o primeiro companheiro que saísse, ele confiou na sua habilidade de atirador de elite: mirou na cabeça... de uma distância de cerca de 40 metros!
Supôs, contudo, que tivesse errado. E disparou um segundo tiro. Depois, pelos jornais, ficou sabendo que acertara na mosca os dois disparos.
Foi o bastante para a repressão perceber imediatamente quem fora o autor da façanha, tanto que a relatou aos jornais --negativamente, claro-- antes mesmo de obter a confirmação de algum militante torturado.
* jornalista, escritor e ex-preso político. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com