A pedido do ex-procurador-geral da República Cláudio Fontele, o Supremo Tribunal Federal realizou no último dia 20 uma audiência pública com um tema no mínimo instigante: quando começa a vida humana? Fontele entrou no STF com uma Ação de Inconstitucionalidade (Adin) contra a Lei de Biossegurança, contestando o uso de embriões em pesquisas. A lei, de 2005, autoriza o uso em pesquisas de embriões congelados em clínicas de fertilização há mais de 3 anos ou que sejam inviáveis (ou seja, ao microscópio revelam ter poucas condições de serem implantados no útero e dar origem a um bebê) A decisão final deve ser anunciada em junho.
A mais conhecida aponta o momento da fertilização do óvulo pelo espermatozóide como o início da vida humana. É a tese endossada pela Igreja Católica desde 1869 – foi a partir daí, também, que a Igreja passou a condenar o aborto. Hoje sabe-se, porém, com base em pesquisas realizadas na Suécia e Dinamarca, que entre 60% e 70% dos óvulos fertilizados no corpo da mulher são descartados no organismo num intervalo de dois a três dias após a fecundação porque são inviáveis.
A própria lei brasileira abre
uma brecha nos primeiros dias após a fertilização, quando o embrião se
encaminha das trompas de Falópio para as paredes do útero, e permite o
uso nesse período da chamada “pílula do dia seguinte”. O motivo é que,
de acordo com a Sociedade Internacional de Ginecologia e Obstetrícia,
uma gravidez só tem início no momento em que o embrião se fixa na
parede do útero, o que se dá no quinto dia após a fecundação. Portanto,
a nossa lei permite que nesse intervalo esse embrião seja descartado,
não constituindo aborto, visto que não há gravidez ainda.
De acordo
com a chamada “visão embriológica”, uma nova vida humana só começa após
a terceira semana de gestação, quando não há mais possibilidade de o
embrião se dividir e dar origem a gêmeos idênticos. Também ganha força
a idéia de que se morremos quando nosso cérebro pára de funcionar,
nossa vida deve se iniciar no momento oposto, ou seja, entre a oitava e
a vigésima semana de gestação, quando começa a atividade elétrica do
cérebro do embrião.
Para outros, porém, é a capacidade de sobreviver
fora do útero, de forma independente, que caracteriza o início da vida
humana. E esse é o momento em que os pulmões do embrião estão maduros,
entre o quinto e o sexto mês. Todas essas visões são cientificamente
consistentes e válidas. Nenhuma é “mais correta” do que a outra.
A
questão, talvez, possa ficar mais definida se ao invés de debater –
interminavelmente – quando começa a vida, passemos a discutir o que é
vida. A bióloga Lynn Margulis define vida (humana ou não) como a
capacidade de “metabolizar, se alimentar, usar energia”. Por essa
definição, embriões congelados não estão vivos.
É importante
observar que não é a Ciência quem define quando um ser humano começa a
viver e quando ele morre, mas a sociedade. Foi assim com os
transplantes, de início uma aventura assustadora em que corações ainda
batendo eram retirados de uma pessoa e colocados em outra. Isso no
tempo em que todos nós definíamos morte como o momento em que o coração
parava de bater. Nossa concepção mudou diante da revolução médica
representada pelos transplantes, que hoje salvam milhares de vida no
mundo todo. Mas esse novo paradigma não é universal. No Japão, por
exemplo, o número de transplantes é reduzido, porque essa população --
rica, moderna e bem informada – não abre mão de fortes tradições
culturais e não aceita bem as idéias de morte cerebral e da doação de
órgãos.
Pesquisadores católicos, contrários ao uso de embriões
nesses estudos, como Alice Teixeira, da Universidade Federal de São
Paulo, alegam que as células-tronco adultas já mostraram seu
extraordinário poder de cura e que não precisamos das células de
embriões. Alegam também que o uso de células embrionárias já se mostrou
inviável e perigoso. Isso porque, ao contrário das células-tronco
adultas, elas não podem ser diretamente injetadas no organismo, onde
produzem tumores chamados teratomas, contendo pêlos, pedaços de ossos,
dentes, unhas e células de gordura. O que eles não dizem é que ninguém,
em sã consciência, pretende injetar células embrionárias no organismo.
O que os cientistas querem é diferenciá-las no laboratórios, isto é,
transformá-las em células nervosas, musculares, células produtoras de
insulina e outras e só então utilizá-las. Além disso, sabem que a
versatilidade das células embrionárias é muito maior que a das células
adultas. As embrionárias podem dar origem a todos os mais de 300
diferentes tipos de célula de nosso organismo. O avanço de uma pesquisa
não significa o descarte de outra. O ideal é a soma das duas.
Outro
argumento duvidoso é o de que as células-tronco adultas já mostraram
seu valor de cura, enquanto as embrionárias não. Só vamos saber o
verdadeiro potencial de cura de umas e de outras com o prosseguimento
das pesquisas. Células-tronco são uma novidade na ciência, um estudo
que tem apenas 9 anos de existência. Portanto, é muito cedo para ser
taxativo tanto no que se refere às adultas (ainda em fase de
experiência e longe de constituir terapias reconhecidas), como no que
se refere às células de embrião.
Vários países estão investindo
nessas pesquisas, entre eles Inglaterra, França, Israel e Estados
Unidos, onde o governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger,
destinou US$ 3 bilhões para esses estudos e a prestigiosa Universidade
de Harvard fundou um centro especializado em células-tronco
embrionárias.
É fundamental que a comunidade científica
brasileira, competente, séria, internacionalmente reconhecida, também
tenha a chance de participar desses estudos e produzir resultados. Do
contrário, corremos o risco – como já vimos tantas outras vezes – de
ficar para trás, na caríssima dependência de tecnologias e terapias
desenvolvidas no exterior.
*Ruth Helena Bellinghini, jornalista de ciência e saúde, Knight Fellow do Massachusetts Institute of Technology (2002-2003) email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.