Extrativismo expostador e classes sociais em Venezuela

A conjuntura de médio prazo na Venezuela é a da tentativa de superar a matriz exportadora, agropecuária até 1920 e de petróleo a partir daí. Essa tentativa por enquanto não emplacou. A passagem daquela produção agropecuária (mesmo que centralmente exportadora) para a extrativista trouxe como resultado uma dependência ainda maior para a economia do país, já que o abandono das atividades produtivas no campo resultou no imperativo da importação de alimentos. O consumo subvencionado pelo Estado tornou boa parte da sociedade venezuelana em “parasitária” e barrou a passagem para o capitalismo competitivo, mesmo em períodos em que outros países da região, aproveitando a oportunidade da conjuntura mundial para a substituição de importações, desenvolviam uma indústria de transformação. Ao mesmo tempo, criou condições adversas para qualquer projeto nacional, ficando a economia interna à mercê de qualquer pressão do polo externo da economia.
 
O programa bolivariano apontava, desde o começo, para uma distribuição mais democrática das rendas do petróleo e, num prazo médio, para a superação da matriz extrativista exportadora. Esse último objetivo esperava contar com as possibilidades de uma conjuntura mundial semelhante àquela que permitiu o nacional-desenvolvimentismo em países da região, a partir dos anos de 1930 e, sobretudo, no pós-segunda guerra mundial. Esse nacional-desenvolvimentismo tardio, porém, não achou, ante a realidade contemporânea, condições semelhantes. Mas mobilizou um setor importante das Forças Armadas, do qual Hugo Chávez foi expressão cabal.
 
Se num primeiro momento favoreceu-se um setor burguês na esperança de desenvolver uma indústria interna, a própria experiência histórica permitiu que a direção política de Chávez percebesse que nenhum setor burguês (dizque) nacional teria a consequência, o interesse e a radicalidade necessários para levar adiante tal projeto. Assim, buscou e podemos dizer que encontrou não apenas eco, mas apoio fundamental nas classes trabalhadoras. O que prova a base de apoio e resistência frente ao golpe de Estado que a burguesia mais umbilicalmente vinculada aos interesses do capital internacional promoveu em 2002.
 
A reviravolta que a ação popular provocou em 2002, sendo o fiel da balança, consolidou uma aliança que se expressou numa série de medidas que ampliavam conquistas democráticas da Constituição de 1999, como o impulso à formação de comunas organizadas. Estava claro para Chávez que a viabilidade do projeto de ruptura com a matriz extrativa exportadora dependia essencialmente do protagonismo desse proletariado. Daí a palavra de ordem que predominou no último período da vida de Chávez: "Comunas ou nada". Era uma carreira contra o tempo. Não apenas contra o câncer que ameaçava sua existência, mas contra o esgotamento da margem política e econômica que a conjuntura regional e mundial permitia.
 
Sem qualquer experiência histórica de alcance nacional, o proletariado venezuelano, com uma iniciativa bem mais organizada que o espontâneo "Caracaço" em 1989, conseguiu barrar o golpe de 2002, mas não conseguiu nesses anos assumir tal protagonismo senão em questões de caráter local. A tentativa de mudar a estrutura agrária com a Lei de Terras de 2005, favorecendo a produção local de alimentos em escala, não teve o impacto que se esperava. Depois de quase 80 anos de abandono de atividades agropecuárias, não foi simples encontrar trabalhadores urbanos dispostos a retornar às atividades agrícolas. Também a passagem da informalidade para o trabalho fabril não é simples no contexto de uma economia que continua sendo rentista. Ao mesmo tempo, e desaparecida a liderança de Chávez, um conjunto de forças sociais que o processo bolivariano não havia descartado, como por exemplo a "boliburguesia" que como toda burguesia venezuelana é também parasitária das rendas do petróleo, ganharam maior peso nas decisões, retardando qualquer avanço na superação da matriz exportadora. As tentativas de acordos via Estado com o capital chinês também se demonstraram inúteis, num prazo maior, para qualquer ruptura com a condição dependente da economia venezuelana. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se uma burocracia de Estado com interesses próprios, com crescente capacidade de decisão e poder.
 
A criação das comunas, a gestão pelos trabalhadores de parte das empresas estatais e as milícias populares não resultaram necessariamente num contra-poder. As milícias, que permitem o armamento popular, estão submetidas às decisões dos quartéis. E se elas podem ser facilmente ativadas em caso de invasão de tropas estrangeiras, para defesa territorial, é mais difícil que possam reagir às ações terroristas das guarimbas (método de enfrentamento dos opositores que se organizam em grupos para a ação direta).
 
Os trabalhadores das empresas estatais que se lançaram ao controle da produção com a consciência da necessidade de assumir o comando, sem experiência e sem um projeto de reestruturação econômica, em muitos casos foram jogados para o escanteio por outros com visão corporativa que agiram na defesa da sua empresa na competição pelos mercados e não como classe trabalhadora que se pensa como dirigente da sociedade. Em outros casos, e bem antes de qualquer tentativa de controle da produção pelos trabalhadores, a burocracia de Estado assumiu o papel de administradora dessas empresas, respondendo a seus próprios interesses como casta burocrática.
 
Já as comunas nem sempre conseguiram assumir autonomia da tutela do Estado e tampouco contaram com um projeto que lhes permitisse agir de maneira coesa contra os interesses burgueses e pequeno-burgueses nele representados.
 
Os partidos políticos de direita e a pequena-burguesia que perdeu em todos esses anos sua "distinção" agora contam com o desespero que campeia nos setores menos organizados da população frente à falta de produtos de primeira necessidade que a economia, dependente das importações desses produtos, sofre. A queda do preço do petróleo, a pressão internacional, o mercado negro que a escassez desses produtos propicia (inclusive pela oportunidade que setores do próprio Estado e da "boliburguesia" veem de fazer "negócios" às custas da população) aumenta o descontentamento geral. Assim, mesmo sem qualquer projeto político favorável às classes trabalhadoras, as forças de direita surfam no vagalhão da desorientação e do medo.
 
O chamado à constituinte por parte do presidente Maduro a partir das comunas e dos movimentos populares dobra a aposta no sentido da mobilização. Uma piscadela para os setores mais organizados das classes trabalhadoras assumirem protagonismo de alcance nacional que não tiveram até hoje.
 
A operação midiática que a grande imprensa vem fazendo apresenta a luta de rua como um simples e oco factoide de mobilizações com opositores de um lado e a polícia de outro. Opositores que não estranhamente estão agrupados em torno de dirigentes partidários que são os mesmos que organizaram o golpe em 2002. A mortandade dos enfrentamentos corre por conta das guarimbas, de linchamentos encabeçados pelos opositores, de atentados de direita e da repressão policial. Nessa ordem.
 
O ambiente de violência que está restrito a algumas cidades é colocado em foco e espetacularizado para criar apoio e opinião favorável a um golpe parlamentar, já que é no parlamento onde a oposição aliada aos interesses do capital internacional tem mais força institucional. Uma parte da população quer que tudo isto acabe logo e que apareçam os produtos de primeira necessidade. Não importa com qual governo, não importa como. Externamente, e ignorando insidiosamente as conquistas democráticas dos últimos anos, a situação é recorrentemente apresentada como uma disputa por mais ou menos democracia dentro do modelo das democracias baseadas nos três poderes e  não os cinco definidos na Constituição de 1999: Legislativo, Executivo, Judicial, Cidadão e Eleitoral. (Lembremos que a invasão a Afeganistão, a Irak, aos Balcães, a Haïti e a Líbia foram precedidas por chamados de bem pensantes a uma intervenção da "comunidade internacional" e em nome da democracia.)
 
Se os movimentos populares assumirem o protagonismo, inclusive no enfrentamento à direita nas ruas, assim como aconteceu em 2002, é possível um outro desdobramento. Em algumas regiões, formaram-se brigadas para combater os assassinatos e as guarimbas e proteger o território, evitando a formação de corredores afetados pelas bandas fascistas. Mas, se a defesa territorial vingar, será apenas o começo. Mesmo assim, será preciso implementar uma estratégia que promova a necessária reestruturação produtiva e trace os rumos de uma economia que não dependa tão profundamente da extração e exportação de petróleo e seus derivados. Não é impossível.
 
Não há socialismo, do século XXI ou de qualquer outro século, se as classes trabalhadoras não assumirem a direção dos destinos da sociedade. Para quem se recorda apenas da primeira parte da frase de Mao "A revolução não é um jantar de gala", vale lembrar a última parte. Se é verdade que a revolução não é um encontro educado e ordeiro, não é o caráter violento em si mesmo o que permite reconhecer uma revolução. O que a define é se tratar de uma ação "pela qual uma classe derruba a outra". A revolução democrática, na América Latina, imediatamente encontra o limite de classe: a burguesia não é democrática, é autocrática. As burguesias latino-americanas não abrem mão de nada. Seus interesses estão intimamente vinculados aos interesses do capital internacional. A recente experiência brasileira, que catapultou empresas de origem local para se transformarem em operadoras transnacionais, assim o demonstra. Demonstraram-se abertamente contrárias a qualquer projeto ou interesse nacional, dispostas a qualquer acordo que permitisse manter os seus lucros e seus empresários se demonstraram sem qualquer caráter, dispostos mesmo a trair seus aliados. Não é a JBS um caso singular. O tamanho do fracasso de qualquer intenção de impulsionar a constituição de uma burguesia nacional forte e torná-la um jogador transnacional é o tamanho do êxito no segundo termo de tal projeto. O primeiro era simplesmente impossível.
 
Não há atalhos.  Ou as classes trabalhadoras se organizam e assumem a iniciativa para fazer avançar o processo, ou ele retrocede. Os 100 anos da revolução soviética, com seus êxitos iniciais e a sua degeneração concomitante à perda de protagonismo das classes produtoras, deveriam nos lembrar desse fato. Em Venezuela não há mais margem para uma saída de consenso com aqueles que apoiaram o golpe de 2002. Não se trata de "resolver a crise" cedendo à chantagem das forças regressivas, trata-se de aprofundar as definições programáticas. Qualquer saída de consenso vai trazer uma direção cruel, vingativa e autocrática. Ela usará o consenso para prescindir imediatamente dele.

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Silvia Beatriz Adoue leciona na Escola Nacional Florestan Fernandes, é professora doutora na Unesp/Araraquara, parecerista da Revista Acadêmica Multidisciplinar Urutágua (UEM) e da Revista Eletrônica Espaço Acadêmico.

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