O Egito está por um fio e, paradoxalmente, o mais provável é que assim continue, no próximo governo.
A narrativa que circula é simplista demais. Tratar-se-ia mais ou menos do seguinte: um governo eleito mostrou-se não só incapaz, mas arrogante e cruelmente insensível ante a exigência absoluta de democracia inclusiva; com economia estagnada; com carestia; com racionamento de combustível; com “apagões” no fornecimento de energia elétrica – e com descontentamento fervente e cada dia mais fervente.
Sim, claro que há muitas e muitas contradições. Pesquisa recente feita pelos Zogby Research descobriu que 74% dos eleitores egípcios confiam cada vez menos na Fraternidade Muçulmana; e que, simultaneamente, 75-78% dos mesmos eleitores tampouco confiam nos partidos de oposição.
Em matéria enviada do Cairo semana passada, Leslie Chang resumiu, para a revista The New Yorker:
Depois de dois anos observando políticos dos dois lados da cerca prevaricar e muito prometer, nem melhorar em nada a vida dos mais pobres, os egípcios parecem estar rejeitando a democracia participativa, sem ter tido sequer chance razoável de participar dela. Num país governado por regime cada dia mais repressor e sem cultura democrática na qual se apoiar, o protesto na rua converteu-se em objetivo em si – mais recompensador que o duro trabalho de governança, de organizar e negociar. É política como catarse emocional, um modo de exibir fúria e frustração, sem se envolver no sistema.
Quando a fúria popular assume proporções de mamute, como as ruas do Cairo veem hoje, algo tem de ceder. Mas em seguida, com outro presidente que substitua Morsi, ele também, mais depressa do que se supõe, estará no mesmo impasse, numa divisão política sem pontes possíveis que, hoje, cinde ao meio a nação egípcia. O impasse político é total.
Os jovens, que estavam nas barricadas no levante de 2011 contra Hosni Mubarak, receberam hoje o reforço da Polícia e do Exército que, ontem, amaldiçoavam. As linhas de combate diluíram-se. A oposição democrática tem de lidar com o fervor revolucionário, num momento em que redes sociais mantidas por empresas como Twitter e Facebook parecem estar com a iniciativa.
Segundo a narrativa dominante, há confronto e contestação entre o “Islã político” e a democracia liberal. Mas a Sociedade (salafista) Call do Egito e seu braço político, o Partido Nour, que se suspeita que seja financiado pela Arábia Saudita, preferem manter-se neutros (os salafistas estão apoiando a antecipação das eleições, principal demanda da oposição; mas não participaram das manifestações pela “demissão” de Mursi).
Pensemos: como se poderia “demitir” Mursi? Não há regra constitucional ou outra lei que defina o meio pelo qual arrancar Mursi da presidência para a qual foi eleito para mandato de quatro anos, há um ano, com apoio de 51,7% dos votos, em eleição que não foi contestada e foi amplamente reconhecida como livre e justa. E não só isso. A Fraternidade Muçulmana venceu, nos dois anos e meio decorridos desde a derrubada de Mubarak, além da eleição presidencial, também as eleições parlamentares ocorridas seis meses antes; e venceu também um referendo votado seis meses depois, ainda em dezembro passado, que aprovou o projeto de Constituição redigido pelos Irmãos.
Três milhões no Cairo e um milhão de pessoas em Alexandria assinaram o abaixo-assinado do Movimento Tamarod, mas 2,5 milhões de egípcios no Alto Egito apoiaram e apoiam a Fraternidade. O Movimento chamado Tamarod (“rebelião”, “rebelde”, em árabe), que lidera a ação contra o governo da Fraternidade Muçulmana é, ele próprio, perfeito enigma. Ninguém sabe de onde saíram seus membros. Reza a lenda que teria sido criado por cinco jovens no final de abril, um dos quais designer de 27 anos, de cavanhaque e rabo-de-cavalo. Todos têm menos de 30 anos. Como Chang observou, o “estilo dominante entre eles é um “Revolucionário Casual”: cabelos compridos, camisetas com punhos cerrados estampados no peito, cigarros de enrolar na rua. Por que seria esse o único futuro pensável para o Egito?” (...)
Mas o Movimento Tamarod parece ser o mais progressista no Egito, e saltou para o centro do palco ao explorar a seu favor a aguda polarização da sociedade e o fracasso dos partidos políticos existentes, que não conseguiram propor programa alternativo; e o declínio dramático da confiança dos cidadãos nas instituições de governo. Ao mesmo tempo, em termos realistas, o único modo pelo qual o Movimento Tamarod poderia derrubar Mursi seria gerar e manter protestos de rua, que degenerem em violência de massa e levem ao colapso da ordem pública, o qual ou cria um álibi ou se converte em álibi – dependendo do ponto de vista – para a ação dos militares.
Obviamente, intervenção militar significa voltar à lousa, desde o primeiro rascunho, anulando mais de dois anos de transição e duas eleições nacionais. A tragédia é que essa negação do passado pode gerar violência em escala sem precedentes, se se levar em conta o que se viu na Argélia. Como escreveu Shadi Hamid, do Brookings’ Doha Centre, no jornal Atlantic:
Se o primeiro presidente islamista eleito é imediatamente depois derrubado, o que impedirá alguém de tentar derrubar também presidentes liberais ou seculares? Se se analisam as justificativas do Movimento Tamarod para derrubar Mursi, só se listam problemas que, com certeza quase absoluta, continuarão a atormentar também seu sucessor. Pouco têm a ver com processo de transição viciado ou com Constituição redigida às pressas, as duas principais objeções da oposição; e têm tudo a ver com fraco desempenho administrativo. (...) A legitimidade não pode depender exclusivamente, sequer principalmente, de competência ou efetividade na administração! Se assim fosse, se justificariam muitas outras revoluções em muitos países; pelo menos, com certeza, em várias democracias europeias.
Evidentemente a deposição de Mursi e a expulsão da Fraternidade, para longe dos espaços e corredores do poder, por golpe militar, não é via pela qual o Egito consiga arrancar-se da crise política pela qual passa. É preciso, isso sim, construir processo político mais inclusivo, o que implica, é claro, que Mursi altere seu estilo e abordagem do governo, e que faça concessões. Ainda mais evidentemente, é preciso que a Constituição seja respaldada por um consenso de opinião, e para isso é preciso emendar alguns dos artigos mais controversos, o que a Fraternidade terá de conceder e reconhecer. Outra vez, a crise no Egito é de tal modo radical e grave, que Mursi deveria considerar a possibilidade de formar um governo de unidade nacional, pelo menos até que se realizem eleições parlamentares.
Quanto à oposição, é preciso que os partidos de oposição saiam de sua área de conforto, a partir da qual agem com petulância, quando as coisas não andam à moda deles. Os partidos de oposição ainda não explicaram por que até hoje ainda não conseguiram vencer eleições.
A verdade crua é que políticos como Amr Moussa e Mohamed El Baradei entendem que o povo egípcio teria alguma espécie de obrigação de elegê-los à presidência; como se o povo devesse a eles a presidência. Os partidos constituídos não cuidaram de construir organização política nem redes de base mediante as quais ouvissem e aprendessem a enfrentar o descontentamento social. É aí, precisamente, que a Fraternidade Muçulmana gera sua vantagem eleitoral. O que não é admissível é a oposição supor que poderia se recusar a aprovar eleições para um novo Parlamento, “porque” a Fraternidade Muçulmana pode conquistar a maioria!
Isso posto, Mursi e a Fraternidade também têm de entender que eleições não são tudo, numa democracia. Há no Egito uma crise de legitimidade política, com uma cisão quanto ao rumo da nação. Surgiu aí um impasse político que pode levar ao confronto com derramamento de sangue e a uma intervenção militar.
É difícil prever o que virá, no futuro imediato. Não se deve descartar um golpe militar, embora não pareça provável. O problema, nesse caso, é que uma vez implantado no poder, militares só muito raramente abdicam e voltam à caserna.
Ou haverá um golpe “pós-moderno”, estilo Turquia, com os militares pressionando Mursi a convocar novas eleições presidenciais. Problema, aqui, é que o Movimento Tamarod insiste que Morsi “tem de sair” e passar o poder ao presidente da Suprema Corte Constitucional , o qual, por sua vez, será feito presidente interino e organizará novas eleições presidenciais.
É possível que Mursi convide líderes de oposição para compor um governo de unidade nacional, num arranjo de partilha do poder, e aceite revisar a Constituição. A renúncia de grande número dos ministros do governo Mursi nas últimas 24 horas sugere essa possibilidade.
O que complica as coisas em qualquer desses cenários é também que há atores externos com apostas muito altas em jogo, no que aconteça no Egito... Grande parte do Oriente Médio está em torvelinho e a Fraternidade Muçulmana é ator importante não só no Egito, mas na Líbia, Tunísia e Palestina. Amanhã, poderá aparecer também no cálculo do poder político em países tão díspares quanto Síria, Jordânia e os estados do Conselho de Cooperação do Golfo Persa.
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3/7/2013, [*] MK Bhadrakumar, Strategic Culture
“Egypt: Muslim Brotherhood Will Not Capitulate (I)”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.