Uma questão crucial

Vários intelectuais e artistas que se envolveram com questões políticas viveram um dilema excruciante: continuar escrevendo, pintando, esculpindo, construindo, fotografando, filmando, dançando, compondo música ou deixar tudo para dedicar-se à militância política? Nem falo em política partidária, que também pode integrar o dilema. Falo da política em sentido amplo.
Max Weber foi envolvido por esta dúvida. Jean-Paul Sartre, ao tornar-se marxista e a militar em favor da revolução chinesa, declarou que o romance estava morto. Para ele, vivíamos, então, um momento iminentemente político, que transformava a arte em atividade supérflua e egoísta. Em seu doloroso exílio de três anos no Rio de Janeiro, Mário de Andrade começou a escrever o romance “Quatro Pessoas”, mas o interrompeu, deixando-o inacabado. Numa de suas cartas, escreveu que o momento era político. Diante da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo, voltar-se para a vidinha de quatro pessoas era algo fútil.
O escritor Julio Cortázar procedeu de maneira diferente: aderiu ao comunismo, mas continuou a escrever suas narrativas na linha do realismo fantástico, que marcou um rico momento da literatura hispano-americana, mas doava grande parte dos seus direitos autorais ao partido para não abdicar da escrita. E o realismo fantástico nunca foi apreciado pelo marxismo clássico.
Não tenho densidade intelectual e moro numa província desde 1970. Comecei minha vida de professor dedicando-me exclusivamente à sala de aula. Lia muito e preparava minhas aulas com afinco. Meu sonho era tornar-me compositor, ficcionista e cientista. As preocupações políticas passavam ao largo da minha vida, embora minhas posições fossem progressistas. O máximo que fiz foi participar da “Passeata dos Cem Mil”, em 1968, sem muita noção do que eu estava fazendo. Também, em 1970, ofereci-me para integrar um grupo de intelectuais peruanos que pretendiam protestar contra uma experiência nuclear da França no Atol de Mururoa. Minha oferta foi rejeitada e os intelectuais desistiram do protesto.
Nos anos de 1970, quando estudante e no início da minha carreira de professor, sofri algumas censuras por não ser socialista. A esquerda que conheci era por demais simplista e autoritária. Entretanto, operou-se uma mudança profunda na minha vida a partir de 1977. Fui convidado por dois estudantes secundaristas a fundar uma organização não governamental de defesa do ambiente. A princípio, recusei o convite por receio de me envolver numa iniciativa destinada ao fracasso. Contudo, uma vez fazendo parte do movimento, nunca mais o deixei.
Pouco a pouco, fui substituindo minhas leituras e pesquisas pelo ativismo. Minha ansiedade também aumentou, pois entendi que não estava mais estudando como devia para o exercício do magistério. Por outro lado, percebi que minha vida política sem mandato e sem remuneração abria largas portas para o conhecimento da realidade.
Mesmo assim, fui tomado por um sentimento de culpa crescente. De um lado, culpava-me por não me dedicar ao magistério como fizera entre 1970 e 1977. De outro, culpava-me por não me empenhar como devia na luta em defesa da questão socioambiental. Pareceu-me, durante muito tempo, que a responsabilidade pela solução dos problemas socioambientais era exclusivamente minha. Até quanto a este aspecto fui ambicioso.
Este brutal sentimento de culpa foi me conduzindo a uma postura intransigente e extremista. Mergulhei em profunda desconfiança quanto aos meus gostos por leituras de filosofia, de ciência, de religião e de ficção; meu gosto por música, por artes plásticas, por cinema. Comecei a repudiar toda minha formação humanística, no seu sentido mais amplo, e artística, muito mais antiga que minha preocupação pela questão socioambiental.
Com a idade, percebi que não tenho força para vencer sozinho lutas extremamente desiguais. Não sou Davi diante de Golias. Passei a desconsiderar as cobranças que me fazem, cobranças estas que partem de pessoas atuando numa frente apenas, enquanto eu atuo em muitas frentes simultaneamente. O problema dos que me cobram é não saber que muitos me cobram e que não tenho obrigação de pagar dívidas que não apenas minhas.
Comecei, então, a retornar às minhas origens. Voltei à filosofia, à ciência, à religião, à literatura, à música, às artes visuais, ao cinema. É impressionante, por um lado, como grande parte do passado em minha vida rebrota em minha memória. É impressionante também como esqueci de tantas coisas que aprendi. Às vezes, em sonho, uma sinfonia inteira sai do meu inconsciente. Ao acordar, é duro não lembrar o nome do seu compositor.
Pelo menos, tento equilibrar minha formação com meu ativismo. Estranho que muitos intelectuais e artistas só se preocupem com o que fazem. Parece que o mundo está limitado a seus interesses. Voltando a meu mundo, não esqueci do que acontece fora dele.
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