De volta ao Córrego do Cula

Analistas críticos do capitalismo, como Beaud, Jameson, Harvey e Lipietz, mostram que o interesse da economia de mercado pela cultura não significa que governos e empresários estejam renunciando ao lucro em nome da cultura. Na verdade, eles estão transformando manifestações imateriais e bens materiais em mercadoria. A desindustrialização das cidades não significa crise, mas a liberação do espaço urbano para os setores de serviços e cultural. O recente reconhecimento do Rio de Janeiro como patrimônio da humanidade pela UNESCO tem, sem dúvida, o interesse de governantes, da sociedade e de especialistas. Contudo, tal reconhecimento não contraria interesses dos empresários. Bem ao contrário, abre uma grande oportunidade de negócios.
Neste sentido, Campos ainda vive uma etapa atrasada do capitalismo. Seus governantes não se cansam de repetir que a cidade conta com um conjunto de bens imóveis da maior importância no Estado do Rio de Janeiro e no Brasil. Da mesma forma, promovem o levantamento de bens naturais. No entanto, ações efetivas para proteger os patrimônios natural e cultural são tíbias. Aliás, o próprio poder público destaca-se como destruidor da natureza e da cultura, mostrando-se leniente com aqueles que agridem bens naturais e culturais.
Volto ao caso do Córrego do Cula. Na formação do delta do Paraíba do Sul, quatro braços se lançaram na construção da planície fluviomarinha: os córregos de Itereré, de Cacumanga, do Cula e o próprio leito do Rio Paraíba do Sul. A partir de 1935, a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) canalizaram os Córregos de Itereré e de Cacumanga. Fizeram intervenções pesadas no Paraíba do Sul, mas não se interessaram pelo Córrego do Cula, que nascia na margem direita do rio e corria para a baixada até se juntar ao Rio Iguaçu, que escoava as águas da Lagoa Feia para o mar. Hoje, foi reduzido à Lagoa do Açu.
O Cula serviu de eixo para a colonização contínua dos europeus no norte-noroeste fluminense. Todo viajante que vinha do Rio de Janeiro ou de Salvador, pela costa, seguia por uma estrada de terra conhecida como Estrada Geral. Ela ligava o Farol de São Tomé a Campos. Posteriormente, o eixo do Cula foi acompanhado pela ferrovia e, finalmente, pela rodovia RJ-216. Todas elas afetaram profundamente o curso d'água.
No meio urbano de Campos, ele foi coberto da nascente à ferrovia para Niteroi e Rio de Janeiro. Posteriormente, aterros para a construção de uma sucursal do McDonald's e de uma academia de ginástica ocultaram parte de seu leito. O que restou dele foi tombado, juntamente com o Canal Campos-Macaé, pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), em 2002. Um empresário da construção civil conseguiu convencer o INEPAC de que o curso d'água fora aberto pela Usina do Queimado na década de 1920, recebendo o nome da empresa. Acontece que mapas anteriores já mostram a sua existência. Fiz um levantamento deles, mas foi tudo inútil. Negligentemente, o INEPAC autorizou o manilhamento do córrego nos fundos de um condomínio fechado que o referido empresário havia construído.
Mais adiante, um secretário municipal de obras da prefeitura construiu um sistema para ocultar o trecho entre a ferrovia e a BR-101. O caso foi parar no Ministério Público Estadual, que ingressou com duas Ações na Justiça Estadual. As obras foram embargadas. Para suspender o embargo, a prefeitura aceitou firmar um termo de ajustamento de conduta que foi homologado pelo Poder Judiciário. A prefeitura assumiu o compromisso de substituir manilhas por bueiros celulares para que o córrego flua adequadamente sob a Avenida Artur Bernardes; refazer os meandros do curso e remover obstáculos ao fluxo hídrico; alargar a desembocadura do córrego no Canal Campos-Macaé; limpar o curso em toda a sua extensão descoberta; levantar a situação do córrego no seu trecho coberto para fins de recuperação; reflorestar as margens do curso mesmo que ele não seja o Cula, entre outros.
Só a substituição de manilhas por bueiros celulares foi feita. No mais, a decisão judicial está sendo descumprida desde 2008. Pior é que o trecho cortado pelo canal foi considerado macrozona de negócios. O WallMart, com autorização da extinta Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (SERLA), desviou o curso d'água com um canal de concreto. O adensamento da área aumenta dia a dia, sem que a prefeitura tome qualquer iniciativa no sentido de cumprir seus compromissos. Não é difícil proteger o que sobrou do Cula como patrimônio natural de interesse do Estado e do município. Os governantes municipais vêm demonstrando um desinteresse colossal na defesa de seu patrimônio. Por tudo isso, creio que é tempo de levar o Ministério Público Estadual a novamente cobrar o acordo celebrado e homologado em juízo.

 

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